Entrevista Especial: Ikeda Riyoko
Seção
de Assuntos Gerais da Secretaria para Igualdade de Gêneros do Gabinete do Japão
O
período em que escreveu A Rosa de Versalhes
Chefe de Secretaria Hayashi (Tomoko): Este ano
(2022) se completará 50 anos do começo da serialização de A Rosa de Versalhes.
Eu, desde minha época de menina, gosto muito tanto de A Rosa de Versalhes
(daqui em diante: Berubara) quanto de A Janela de Orfeu. Perguntando às jovens
trabalhadoras da Secretaria para Igualdade de Gêneros, todas elas disseram
conhecer Berubara e assim eu pude perceber novamente ser esta uma obra lida por
diferentes gerações. A Janela de Orfeu também. Depois de a ler, morei na Europa
a trabalho e penso que é uma obra magnífica porque a atmosfera da Alemanha
aparece nos desenhos esplendidamente.
Ikeda: Muito obrigada.
Hayashi: Para a materialização de uma
sociedade com igualdade de gênero, gostaria de ouvir hoje suas histórias,
incluindo suas obras e sua própria experiência. Indo direto ao ponto, gostaria
de ouvir primeiramente sobre Berubara. Penso que esta obra passou uma impressão
muito forte para as meninas daquela época de que a forma de vida de Oscar
também era uma possibilidade. Era magnífico vê-la vivendo com seus ideais, e a
sua imagem liderando seus subordinados, enquanto mulher nesta sociedade de
homens que é o exército, justapõe-se ao quadro d’A Liberdade Guiando o Povo de
Delacroix. Essa imagem de Oscar era bem vívida. Pensando bem, você escreveu
Berubara na década de 70, então faz 50 anos. O que fez você colocar uma
protagonista mulher trabalhando em uma sociedade de homens quando ainda era
difícil para mulheres saírem para trabalhar?
Ikeda: Originalmente, eu vinha cultivando
a ideia de querer desenhar a vida de Maria Antonieta desde a época do Ensino
Médio. Porém, através de Oscar, penso que consegui expressar o que queria dizer
naquela época.
Hayashi: Isso que você queria expressar
é a ideia de mulheres trabalharem em posições de igualdade e se tornarem
independentes economicamente?
Ikeda: Acho que as pessoas de agora
não conseguem imaginar algo assim, mas, na época, os mangás eram desdenhados -
aliás, eram vistos como uma má influência. Nessa época em que muitos adultos
proibiam suas crianças de ler mangás, embora houvesse, claro, quem lesse e me
elogiasse bastante, também havia críticas de que eu estava sendo uma má
influência para as crianças. Eu fui colocada na linha de frente do fogo cruzado
e transmiti muito fortemente minha vontade de que tratassem o mangá como
cultura. Eu, junto com o pessoal da edição, desenhava com a ideia de que algum
dia o mangá ficasse para as gerações posteriores.
Além disso, naquela época, mesmo desenhando
na mesma revista e tendo mais ou menos a mesma popularidade, as mulheres
recebiam apenas metade do valor que os homens ganhavam pelos manuscritos.
Quando perguntei se isso não era estranho, me falaram que eu era uma “mulher
pão-dura” (okane ni kitanai onna da).
Também me falaram que era natural homens ganharem o dobro porque mulheres
eventualmente se casam e são alimentadas por eles. Era esta a época.
Hayashi: Isso é horrível, não é?
Ikeda: Como Berubara foi muito
elogiada e se tornou um fenômeno social, recebi telefonemas de homens dizendo
que eu era muito audaciosa para uma mulher. Eu construí uma casa e me falaram
também que era impertinente por fazer isso sendo mulher. Mas eu brigava dizendo
que não era como se eu estivesse recebendo dinheiro deles. Pensando nisso
agora, parece que foi um sonho.
Hayashi: Isso é realmente horrível, não?
Estou chocada.
Ikeda: Há 50 anos era assim. Mesmo
que você tentasse conseguir uma hipoteca para construir uma casa, recebia
negativa do banco por ser mulher.
Hayashi: A chamada sociedade de
homens é isso. Mesmo sem saber dessas coisas, eu tinha admiração pela Oscar
quando era criança.
Ikeda: Muito obrigada. Eu tive a
intenção de desenhar para meninas do Ensino Fundamental, mas fiquei surpresa
por também receber o apoio de muitas mulheres que trabalhavam.
Hayashi: Se pensarmos na situação da
sociedade daquela época, havia realmente muitas mulheres que queriam viver como
Oscar.
Ikeda: É verdade. Ademais, também
percebi como mulheres que trabalham desejam homens compreensivos com quem podem
contar, como o André.
Hayashi: Para esta entrevista, eu
perguntei às mulheres com quem trabalho na Secretaria para a Igualdade de
Gêneros de quem elas mais gostavam dentre os vários homens charmosos que
aparecem em Berubara. Ao levantarem a mão, o André era quem tinha,
esmagadoramente, maior popularidade.
Ikeda: Naquela época, parece que
todas as mulheres que estavam se esforçando no trabalho queriam um André. Eu
pessoalmente estava muito ocupada para ficar elucubrando sobre isso, mas achei
que ao lado de uma mulher como Oscar era preciso ter um homem como André.
A
Janela de Orfeu é o trabalho de uma vida
Hayashi: A seguir, quero perguntar
sobre A Janela de Orfeu. Outro dia, quando passei pela livraria cooperativa da
Universidade de Tóquio, havia um canto chamado “livros recomendados por alunos
da Universidade de Tóquio que gostaríamos que alunos do Ensino Fundamental 2 e
Ensino Médio lessem”. Ali tinha A Janela de Orfeu enfileirado. Era o único
mangá. Vai fazer 40 anos que você completou essa serialização, mas é uma obra
também lida por outras gerações.
Ikeda: Eu fico feliz. Para mim,
Berubara é uma obra representativa, mas creio que A Janela de Orfeu é a obra da
minha vida. Como Berubara tinha a limitação de ser direcionada para alunas do
Ensino Fundamental, não é como se eu tivesse conseguido desenhar tudo que
queria, além de ter sido uma serialização curta que não chegou a durar 2 anos.
Como me foi permitido desenhar o quanto quisesse em A Janela de Orfeu, creio
ser a obra da minha vida.
Hayashi: Relendo-a, senti que há
partes do contexto da época que têm paralelos com os acontecimentos de agora.
Atualmente, se você olha para o mundo, devido às inovações tecnológicas - como
a revolução de TI - e à globalização, a economia tem se desenvolvido. Porém, a
diferença no valor de salários recebidos entre a população de um país está
aumentando e, por isso, há países em que a política está mudando muito. A
Europa do final do século XIX até a Primeira Guerra Mundial que serve de palco
para A Janela de Orfeu também passou por uma situação em que a política sofreu
um choque violento porque, devido à Segunda Revolução Industrial, a economia se
desenvolveu, mas a diferença no valor dos salários dentro dos países aumentou.
Há partes que parecem com a atualidade e, ao ler a obra, ela a faz pensar
muitas coisas. Há alguma razão para você ter focado nessa época?
Ikeda: De vez em quando, eu sentia
vontade de desenhar a Revolução Russa. Também há o fato de, quando criança,
querer fazer faculdade de música e estar estudando para isso. Porém, como parei
no meio do processo, quis tentar desenhar jovens vivendo nesse mundo de música.
Como no período em que estava desenhando Berubara eu não tinha tanto dinheiro
assim, não consegui nem fazer uma pesquisa prévia e eu nunca tinha nem viajado
de avião. Por isso, nunca tinha ido à França. Graças a Berubara, passei a
conseguir ir para a Europa e ver os lugares que de fato viraram cenários em
minhas histórias. É devido a isso que se tornou uma obra memorável para mim.
Hayashi: Eu já vi uma entrevista na
qual você fala que transformou Ratisbona em cenário da sua obra porque desceu
do trem por acaso nessa cidade e gostou muito dela. Eu também fui para
Ratisbona e lembro de ter ficado impressionada e pensado “ah, então é esse o
tipo de lugar” ao ver a paisagem urbana antiga, que continua desde a Idade
Média, e as catedrais.
Ikeda: Quando eu fui, olharam-me com
curiosidade porque só tinham pessoas que nunca viram um japonês antes. Depois
disso, eu recebi uma carta do Secretário do Turismo de Ratisbona dizendo:
“Embora a cidade de Ratisbona não seja promovida como destino dentro da rota de
turismo, ultimamente há muitas jovens vindo do Japão e todas elas têm o mesmo
livro. Quando experimentei perguntar do que se tratava, elas todas estavam
passeando pela cidade carregando a sua obra. Eu agradeço profundamente”. A
biblioteca da Universidade de Ratisbona tem todos os volumes d’A Janela de
Orfeu. Eu fiquei muito feliz porque para mim, em certo sentido, essa foi a
primeira vez em que toquei na verdadeira Europa.
Hayashi: Eu acho que o charme de A
Janela de Orfeu está em que não são apenas os protagonistas Julius, Klaus e
Isaak, mas há também muitos personagens secundários excelentes cujas
personalidades são proeminentes. Além disso, também me impactou mulheres
desenhadas que agem fora da caixinha e são independentes, como Maria Barbara e
Katharina. Naquela época, havia o movimento sufragista em lugares como a
Inglaterra, mas mesmo com as mulheres querendo se tornar independentes, era na
realidade um período complicado para isso. E estavam desenhadas de maneira
vívida personagens como Maria Barbara que virou uma mulher de negócios e
Katharina que virou chefe de enfermagem.
Ikeda: Pergunto-me se consegui
desenhar mulheres que viveram segundo seus próprios ideais. Na verdade, creio
que se tornar independente e viver na condição de mulher era, em certo sentido,
deveras difícil naquela época.
Claudine...!
que estava à frente de seu tempo.
Hayashi: Eu também gosto da obra Claudine...!.
Pegar um assunto que hoje em dia é chamado de transgênero é algo que me deixou
admirada pela sua visão perspicaz.
Ikeda: Fiquei surpresa quando você
disse que gostava de Claudine...!. Além dessa obra, tenho também outros
one-shots que tratam de temas como o bullying de crianças. Eu desenhei há
bastante tempo, então me pergunto se com todas elas eu fui prematura. Porém,
mesmo dentro dos meus one-shots, Claudine...! é o de que eu mais gosto.
Hayashi: É uma história muito
dolorosa, não é? Há alguma razão para você ter voltado sua atenção para LGBTQs
naquela época?
Ikeda: O caso de Claudine estava no
livro de um psicólogo francês chamado Boss. Lá estava escrito que “não dá para
tratar o caso de Claudine apenas como alguém transgênero, Resumindo: é alguém
que nasceu com o sexo trocado”. Foi essa a deixa para mim.
Hayashi: Ah, foi isso. Atualmente, no
Japão as condições são tais que os projetos de lei para a avanço do
entendimento de pessoas LGBTQs não têm andado.
Ikeda: É a mesma coisa com a
possibilidade de casais usarem sobrenomes diferentes. Não resolvem isso nunca.
É extremamente lamentável que apenas o Japão esteja ficando para trás.
Para
a materialização da igualdade entre os gêneros
Hayashi: Atualmente, o Japão ocupa a
posição 120 no ranking Diferenças Globais entre Gêneros, sendo o último
colocado entre os países desenvolvidos. Desde que você desenhou Berubara, a
situação que envolve as mulheres talvez tenha melhorado, mas estamos muito
atrasados quando comparados a outros países. Nesta situação, o que você acha
que se deve fazer? O que é importante?
Ikeda: Eu acho que o sistema de cotas
é importante. Ele é muito importante especialmente quando se trata de eleições.
E acho que, ao mesmo tempo, as mulheres devem estudar apropriadamente. Quero
que elas sejam capazes de debater em pé de igualdade com os homens.
Hayashi: Embora agora o eleitorado
ativo do Japão consista em 52% de mulheres e nós sejamos maioria, é
extremamente lamentável que haja tão poucas no nosso parlamento.
Ikeda: Assistindo à televisão, vê-se
muitas mulheres debatendo questões econômicas e sociais. Por isso gostaria de
vê-las candidatando-se, não é?
Hayashi: Nós conseguimos chegar a um
acordo em que todos os ministérios e departamentos se comprometessem com uma
regra de que não aceitariam apenas palestrantes homens nos eventos como
simpósios feitos ou patrocinados pelo governo em outubro deste ano (2022). Com esses
esforços se acumulando aos poucos, quero construir um ambiente em que mulheres
excelentes participem das atividades.
Ikeda: Pensando no Período Edo, acho
que os homens e as mulheres estavam em condição de igualdade, seja trabalhando
na agricultura ou na pesca. Não havia donas de casa. No Japão, é antiga a
história de homens e mulheres trabalhando juntos e dando apoio uns aos outros.
Porém, seja em comunidades agrícolas, seja em comunidades pesqueiras, não acho
que as mulheres tivessem consciência de serem mulheres trabalhando. Acho que
havia uma igualdade de gênero esplêndida.
Hayashi; Tenho a impressão que o
período do milagre econômico foi uma época em que mulheres podiam ser donas de
casa em período integral e com isso fixou-se a ideia de divisão de trabalhos em
que os homens trabalhavam fora e as mulheres trabalhavam com serviços
domésticos.
Ikeda: Esse arranjo é um luxo (N.T.:
no sentido de poder dar-se ao luxo de fazer algo). No momento, eu estou
escrevendo um roteiro para uma ópera e a história se passa na Finlândia. Eu
tinha colocado um cenário em que aparecia uma dona de casa, mas uma pessoa da
Finlândia pediu para eu reescrever essa parte porque parece que os finlandeses não conseguem entender o que é uma dona de casa. O fato de as
mulheres trabalharem é algo óbvio, então parece que eles não entendem a ideia
de alguém não trabalhar e ficar em casa. Fiquei surpresa quando pediram que eu
reescrevesse para uma mulher que tivesse emprego.
Hayashi: Por que não existem donas de
casa na Finlândia?
Ikeda: Parece que sim. Fico me
perguntando se ser dona de casa em período integral não é algo que está se
tornando uma peculiaridade do Japão.
Hayashi: Como no Japão as famílias
também têm se diversificado ultimamente, acho que esse modelo de donas de casa
que apareceu no período Showa e a mentalidade que o acompanha deixaram de ser
realistas. É como a questão das dificuldades econômicas de famílias
monoparentais que surgiu durante a pandemia de coronavírus. Para começo de
conversa, se você tem 600 mil casamentos anualmente, há 200 mil divórcios.
Embora as famílias e o jeito que as mulheres vivem tenham mudado, esse sistema
e várias estruturas permanecem velhos e não estão atualizados conforme o
Período Reiwa.
Ikeda: Quando o homem e a mulher se
casam e ficam com um único sobrenome, geralmente aquele adotado é o do
homem, não é? Como eu já me divorciei, tive momentos angustiantes. É preciso
passar pelas formalidades de voltar ao seu sobrenome antigo em vários lugares.
Além disso, acho estranho mudar o
sobrenome porque, quando você nasce, seus pais pensam em um nome que combine
com ele. Como é um nome que seus pais pensaram com todo o cuidado, você acaba
querendo valorizá-lo, não? Hoje em dia, tem crescido o número de mulheres que
trabalham solteiras porque a idade de casamento está bem mais tardia. Como nós
vivemos em sociedade com o nosso nome como nossa identidade, acho que mudar
isso traz muitas dificuldades.
Hayashi: Eu concordo muito. Obrigada
por me permitir ter esta conversa preciosa com você hoje.