quarta-feira, 8 de novembro de 2023

ENTREVISTA: RIYOKO IKEDA FALA SOBRE IGUALDADE DE GÊNERO

 


Entrevista Especial: Riyoko Ikeda

Seção de Assuntos Gerais da Secretaria para Igualdade de Gêneros do Gabinete do Japão

 

O período em que escreveu A Rosa de Versalhes

 

Chefe de Secretaria Hayashi (Tomoko): Este ano (2022) se completará 50 anos do começo da serialização de A Rosa de Versalhes. Eu, desde minha época de menina, gosto muito tanto de A Rosa de Versalhes (daqui em diante: Berubara) quanto de A Janela de Orfeu. Perguntando às jovens trabalhadoras da Secretaria para Igualdade de Gêneros, todas elas disseram conhecer Berubara e assim eu pude perceber novamente ser esta uma obra lida por diferentes gerações. A Janela de Orfeu também. Depois de a ler, morei na Europa a trabalho e penso que é uma obra magnífica porque a atmosfera da Alemanha aparece nos desenhos esplendidamente.

 

Ikeda: Muito obrigada.

 

Hayashi: Para a materialização de uma sociedade com igualdade de gênero, gostaria de ouvir hoje suas histórias, incluindo suas obras e sua própria experiência. Indo direto ao ponto, gostaria de ouvir primeiramente sobre Berubara. Penso que esta obra passou uma impressão muito forte para as meninas daquela época de que a forma de vida de Oscar também era uma possibilidade. Era magnífico vê-la vivendo com seus ideais, e a sua imagem liderando seus subordinados, enquanto mulher nesta sociedade de homens que é o exército, justapõe-se ao quadro d’A Liberdade Guiando o Povo de Delacroix. Essa imagem de Oscar era bem vívida. Pensando bem, você escreveu Berubara na década de 70, então faz 50 anos. O que fez você colocar uma protagonista mulher trabalhando em uma sociedade de homens quando ainda era difícil para mulheres saírem para trabalhar?

 

Ikeda: Originalmente, eu vinha cultivando a ideia de querer desenhar a vida de Maria Antonieta desde a época do Ensino Médio. Porém, através de Oscar, penso que consegui expressar o que queria dizer naquela época.

 

Hayashi: Isso que você queria expressar é a ideia de mulheres trabalharem em posições de igualdade e se tornarem independentes economicamente?

 

Ikeda: Acho que as pessoas de agora não conseguem imaginar algo assim, mas, na época, os mangás eram desdenhados - aliás, eram vistos como uma má influência. Nessa época em que muitos adultos proibiam suas crianças de ler mangás, embora houvesse, claro, quem lesse e me elogiasse bastante, também havia críticas de que eu estava sendo uma má influência para as crianças. Eu fui colocada na linha de frente do fogo cruzado e transmiti muito fortemente minha vontade de que tratassem o mangá como cultura. Eu, junto com o pessoal da edição, desenhava com a ideia de que algum dia o mangá ficasse para as gerações posteriores.

Além disso, naquela época, mesmo desenhando na mesma revista e tendo mais ou menos a mesma popularidade, as mulheres recebiam apenas metade do valor que os homens ganhavam pelos manuscritos. Quando perguntei se isso não era estranho, me falaram que eu era uma “mulher pão-dura” (okane ni kitanai onna da). Também me falaram que era natural homens ganharem o dobro porque mulheres eventualmente se casam e são alimentadas por eles. Era esta a época.

 

Hayashi: Isso é horrível, não é?

 

Ikeda: Como Berubara foi muito elogiada e se tornou um fenômeno social, recebi telefonemas de homens dizendo que eu era muito audaciosa para uma mulher. Eu construí uma casa e me falaram também que era impertinente por fazer isso sendo mulher. Mas eu brigava dizendo que não era como se eu estivesse recebendo dinheiro deles. Pensando nisso agora, parece que foi um sonho.

 

Hayashi: Isso é realmente horrível, não? Estou chocada.

 

Ikeda: Há 50 anos era assim. Mesmo que você tentasse conseguir uma hipoteca para construir uma casa, recebia negativa do banco por ser mulher.

 

Hayashi: A chamada sociedade de homens é isso. Mesmo sem saber dessas coisas, eu tinha admiração pela Oscar quando era criança.

 

Ikeda: Muito obrigada. Eu tive a intenção de desenhar para meninas do Ensino Fundamental, mas fiquei surpresa por também receber o apoio de muitas mulheres que trabalhavam.

 

Hayashi: Se pensarmos na situação da sociedade daquela época, havia realmente muitas mulheres que queriam viver como Oscar.

 

Ikeda: É verdade. Ademais, também percebi como mulheres que trabalham desejam homens compreensivos com quem podem contar, como o André.

 

Hayashi: Para esta entrevista, eu perguntei às mulheres com quem trabalho na Secretaria para a Igualdade de Gêneros de quem elas mais gostavam dentre os vários homens charmosos que aparecem em Berubara. Ao levantarem a mão, o André era quem tinha, esmagadoramente, maior popularidade.

 

Ikeda: Naquela época, parece que todas as mulheres que estavam se esforçando no trabalho queriam um André. Eu pessoalmente estava muito ocupada para ficar elucubrando sobre isso, mas achei que ao lado de uma mulher como Oscar era preciso ter um homem como André.

 

A Janela de Orfeu é o trabalho de uma vida

 

Hayashi: A seguir, quero perguntar sobre A Janela de Orfeu. Outro dia, quando passei pela livraria cooperativa da Universidade de Tóquio, havia um canto chamado “livros recomendados por alunos da Universidade de Tóquio que gostaríamos que alunos do Ensino Fundamental 2 e Ensino Médio lessem”. Ali tinha A Janela de Orfeu enfileirado. Era o único mangá. Vai fazer 40 anos que você completou essa serialização, mas é uma obra também lida por outras gerações.

 

Ikeda: Eu fico feliz. Para mim, Berubara é uma obra representativa, mas creio que A Janela de Orfeu é a obra da minha vida. Como Berubara tinha a limitação de ser direcionada para alunas do Ensino Fundamental, não é como se eu tivesse conseguido desenhar tudo que queria, além de ter sido uma serialização curta que não chegou a durar 2 anos. Como me foi permitido desenhar o quanto quisesse em A Janela de Orfeu, creio ser a obra da minha vida.

 

Hayashi: Relendo-a, senti que há partes do contexto da época que têm paralelos com os acontecimentos de agora. Atualmente, se você olha para o mundo, devido às inovações tecnológicas - como a revolução de TI - e à globalização, a economia tem se desenvolvido. Porém, a diferença no valor de salários recebidos entre a população de um país está aumentando e, por isso, há países em que a política está mudando muito. A Europa do final do século XIX até a Primeira Guerra Mundial que serve de palco para A Janela de Orfeu também passou por uma situação em que a política sofreu um choque violento porque, devido à Segunda Revolução Industrial, a economia se desenvolveu, mas a diferença no valor dos salários dentro dos países aumentou. Há partes que parecem com a atualidade e, ao ler a obra, ela a faz pensar muitas coisas. Há alguma razão para você ter focado nessa época?

 

Ikeda: De vez em quando, eu sentia vontade de desenhar a Revolução Russa. Também há o fato de, quando criança, querer fazer faculdade de música e estar estudando para isso. Porém, como parei no meio do processo, quis tentar desenhar jovens vivendo nesse mundo de música. Como no período em que estava desenhando Berubara eu não tinha tanto dinheiro assim, não consegui nem fazer uma pesquisa prévia e eu nunca tinha nem viajado de avião. Por isso, nunca tinha ido à França. Graças a Berubara, passei a conseguir ir para a Europa e ver os lugares que de fato viraram cenários em minhas histórias. É devido a isso que se tornou uma obra memorável para mim.

 

Hayashi: Eu já vi uma entrevista na qual você fala que transformou Ratisbona em cenário da sua obra porque desceu do trem por acaso nessa cidade e gostou muito dela. Eu também fui para Ratisbona e lembro de ter ficado impressionada e pensado “ah, então é esse o tipo de lugar” ao ver a paisagem urbana antiga, que continua desde a Idade Média, e as catedrais.

 

Ikeda: Quando eu fui, olharam-me com curiosidade porque só tinham pessoas que nunca viram um japonês antes. Depois disso, eu recebi uma carta do Secretário do Turismo de Ratisbona dizendo: “Embora a cidade de Ratisbona não seja promovida como destino dentro da rota de turismo, ultimamente há muitas jovens vindo do Japão e todas elas têm o mesmo livro. Quando experimentei perguntar do que se tratava, elas todas estavam passeando pela cidade carregando a sua obra. Eu agradeço profundamente”. A biblioteca da Universidade de Ratisbona tem todos os volumes d’A Janela de Orfeu. Eu fiquei muito feliz porque para mim, em certo sentido, essa foi a primeira vez em que toquei na verdadeira Europa.

 

Hayashi: Eu acho que o charme de A Janela de Orfeu está em que não são apenas os protagonistas Julius, Klaus e Isaak, mas há também muitos personagens secundários excelentes cujas personalidades são proeminentes. Além disso, também me impactou mulheres desenhadas que agem fora da caixinha e são independentes, como Maria Barbara e Katharina. Naquela época, havia o movimento sufragista em lugares como a Inglaterra, mas mesmo com as mulheres querendo se tornar independentes, era na realidade um período complicado para isso. E estavam desenhadas de maneira vívida personagens como Maria Barbara que virou uma mulher de negócios e Katharina que virou chefe de enfermagem.

 

Ikeda: Pergunto-me se consegui desenhar mulheres que viveram segundo seus próprios ideais. Na verdade, creio que se tornar independente e viver na condição de mulher era, em certo sentido, deveras difícil naquela época.

 

Claudine...! que estava à frente de seu tempo.

 

Hayashi: Eu também gosto da obra Claudine...!. Pegar um assunto que hoje em dia é chamado de transgênero é algo que me deixou admirada pela sua visão perspicaz.

 

Ikeda: Fiquei surpresa quando você disse que gostava de Claudine...!. Além dessa obra, tenho também outros one-shots que tratam de temas como o bullying de crianças. Eu desenhei há bastante tempo, então me pergunto se com todas elas eu fui prematura. Porém, mesmo dentro dos meus one-shots, Claudine...! é o de que eu mais gosto.

 

Hayashi: É uma história muito dolorosa, não é? Há alguma razão para você ter voltado sua atenção para LGBTQs naquela época?

 

Ikeda: O caso de Claudine estava no livro de um psicólogo francês chamado Boss. Lá estava escrito que “não dá para tratar o caso de Claudine apenas como alguém transgênero, Resumindo: é alguém que nasceu com o sexo trocado”. Foi essa a deixa para mim.

 

Hayashi: Ah, foi isso. Atualmente, no Japão as condições são tais que os projetos de lei para a avanço do entendimento de pessoas LGBTQs não têm andado.

 

Ikeda: É a mesma coisa com a possibilidade de casais usarem sobrenomes diferentes. Não resolvem isso nunca. É extremamente lamentável que apenas o Japão esteja ficando para trás.

 

Para a materialização da igualdade entre os gêneros

 

Hayashi: Atualmente, o Japão ocupa a posição 120 no ranking Diferenças Globais entre Gêneros, sendo o último colocado entre os países desenvolvidos. Desde que você desenhou Berubara, a situação que envolve as mulheres talvez tenha melhorado, mas estamos muito atrasados quando comparados a outros países. Nesta situação, o que você acha que se deve fazer? O que é importante?

 

Ikeda: Eu acho que o sistema de cotas é importante. Ele é muito importante especialmente quando se trata de eleições. E acho que, ao mesmo tempo, as mulheres devem estudar apropriadamente. Quero que elas sejam capazes de debater em pé de igualdade com os homens.

 

Hayashi: Embora agora o eleitorado ativo do Japão consista em 52% de mulheres e nós sejamos maioria, é extremamente lamentável que haja tão poucas no nosso parlamento.

 

Ikeda: Assistindo à televisão, vê-se muitas mulheres debatendo questões econômicas e sociais. Por isso gostaria de vê-las candidatando-se, não é?

 

Hayashi: Nós conseguimos chegar a um acordo em que todos os ministérios e departamentos se comprometessem com uma regra de que não aceitariam apenas palestrantes homens nos eventos como simpósios feitos ou patrocinados pelo governo em outubro deste ano (2022). Com esses esforços se acumulando aos poucos, quero construir um ambiente em que mulheres excelentes participem das atividades.

 

Ikeda: Pensando no Período Edo, acho que os homens e as mulheres estavam em condição de igualdade, seja trabalhando na agricultura ou na pesca. Não havia donas de casa. No Japão, é antiga a história de homens e mulheres trabalhando juntos e dando apoio uns aos outros. Porém, seja em comunidades agrícolas, seja em comunidades pesqueiras, não acho que as mulheres tivessem consciência de serem mulheres trabalhando. Acho que havia uma igualdade de gênero esplêndida.

 

Hayashi; Tenho a impressão que o período do milagre econômico foi uma época em que mulheres podiam ser donas de casa em período integral e com isso fixou-se a ideia de divisão de trabalhos em que os homens trabalhavam fora e as mulheres trabalhavam com serviços domésticos.

 

Ikeda: Esse arranjo é um luxo (N.T.: no sentido de poder dar-se ao luxo de fazer algo). No momento, eu estou escrevendo um roteiro para uma ópera e a história se passa na Finlândia. Eu tinha colocado um cenário em que aparecia uma dona de casa, mas uma pessoa da Finlândia pediu para eu reescrever essa parte porque parece que os finlandeses não conseguem entender o que é uma dona de casa. O fato de as mulheres trabalharem é algo óbvio, então parece que eles não entendem a ideia de alguém não trabalhar e ficar em casa. Fiquei surpresa quando pediram que eu reescrevesse para uma mulher que tivesse emprego.

 

Hayashi: Por que não existem donas de casa na Finlândia?

 

Ikeda: Parece que sim. Fico me perguntando se ser dona de casa em período integral não é algo que está se tornando uma peculiaridade do Japão.

 

Hayashi: Como no Japão as famílias também têm se diversificado ultimamente, acho que esse modelo de donas de casa que apareceu no período Showa e a mentalidade que o acompanha deixaram de ser realistas. É como a questão das dificuldades econômicas de famílias monoparentais que surgiu durante a pandemia de coronavírus. Para começo de conversa, se você tem 600 mil casamentos anualmente, há 200 mil divórcios. Embora as famílias e o jeito que as mulheres vivem tenham mudado, esse sistema e várias estruturas permanecem velhos e não estão atualizados conforme o Período Reiwa.

 

Ikeda: Quando o homem e a mulher se casam e ficam com um único sobrenome, geralmente aquele adotado é o do homem, não é? Como eu já me divorciei, tive momentos angustiantes. É preciso passar pelas formalidades de voltar ao seu sobrenome antigo em vários lugares.

Além disso, acho estranho mudar o sobrenome porque, quando você nasce, seus pais pensam em um nome que combine com ele. Como é um nome que seus pais pensaram com todo o cuidado, você acaba querendo valorizá-lo, não? Hoje em dia, tem crescido o número de mulheres que trabalham solteiras porque a idade de casamento está bem mais tardia. Como nós vivemos em sociedade com o nosso nome como nossa identidade, acho que mudar isso traz muitas dificuldades.

 

Hayashi: Eu concordo muito. Obrigada por me permitir ter esta conversa preciosa com você hoje.

RETORNO DO BLOG E MUDANÇA DO NOME

Ontem, em um impulso, resolvi traduzir uma entrevista, coisa que não fazia há anos. Já tem algum tempo que venho considerando voltar com o blog, mas sempre enrolava e arrumava alguma desculpa. Só para explicar: o nome antigo deste site era Thai BL Dramas e, como o próprio título sugere, era dedicado a falar de BLs tailandeses.
Minha intenção era fazer tradução de reportagens em inglês e japonês sobre esse assunto e escrever críticas dos BLs de lá, mas desisti por um motivo bem simples: havia gente fazendo o mesmo trabalho e com mais recursos. O principal portal/Twitter era o Central Boys Love, que aparentemente tinha até gente fluente em tailandês na equipe. O grupo brigou, o portal e a conta não são atualizados há tempos, porém há outros substitutos fazendo ótimos trabalhos. Recomendo especialmente o Boys Love Hub e o Nunca Pause o BL.
Assim, decidi mudar o foco do meu blog. A partir de agora, traduzirei entrevistas que encontrar por aí com mangakás e atores, especialmente de BL e shoujo mangás. Daí a mudança de nome: Manga Yashiki.
Isto é uma Yashiki.

Yashiki é um termo que pode indicar tanto um terreno quanto uma casa, geralmente casas grandes (mansões). Sabe aqueles conjuntos de construções que você vê em produções de época japoneses? Então, isso é um yashiki. E como o foco é em mangás, veio-me o nome: "mansão" dos mangás. Gosto de imaginar a classe alta de períodos históricos fazendo reuniões não para adivinhar os sabores dos chás ou o cheiro dos incensos, mas para - anacronicamente, claro - ler seus quadrinhos favoritos.
Quanto tempo isso vai durar, não sei. Mas traduzi uma entrevista e tenho várias outras aqui com as quais posso trabalhar. Espero conseguir criar o hábito de fazer essas traduções.


ARTIGO ESPECIAL: MOTO HAGIO E AYA KANNO CONVERSAM SOBRE MANGÁS HISTÓRICOS E PROTAGONISTAS MULHERES

Ano passado, o Comic Natalie promoveu um bate-papo muito especial entre Moto Hagio a Aya Kanno para comemorar o lançamento do primeiro volum...