quarta-feira, 21 de outubro de 2020

(TRADUÇÃO) Sobre as séries Boys’ Love da Tailândia

2Gether: The Series

 Mais uma tradução, dessa vez de um artigo feito no final de maio pelo escritor e jornalista filipino Danton Remoto para o jornal The Philippine Star (original aqui). 

Sobre as séries Boys’ Love da Tailândia 

 Há duas semanas, o editor e escritor Jun Matias pediu ao escritor Juan Miguel Severo e a mim para nos juntarmos ao seu debate “Lock and Roll” (1) no Facebook sobre Boys’ Love, ou séries BL. Produzidas na Tailândia, as séries televisivas BL tomaram o Sudeste Asiático de assalto, especialmente na época do COVID-19. 

 As séries televisivas Boys’ Love lidam com histórias de garotos que se apaixonam por outros garotos. Mas na Tailândia elas são radicais por se afastarem do kathoey, ou o estereótipo do homem gay afeminado e que trabalha nos salões de beleza ou na indústria de entretenimento. Esses garotos são viris e belos, eles jogam futebol e costumavam namorar garotas, eles moram em belas casas e vestem roupas estilosas. Esses programas são quase como uma típica série de televisão sobre amor e perdas, exceto que, aqui, os garotos apaixonam-se por outros garotos. 

 Hendri Go, meu informante e incansável organizador do Festival Literário de Cebu (Liftest), disse que a cultura yaoi japonesa influenciou o BL tailandês. Os yaoi são mangás japoneses que lidam com o amor gay físico. As fãs de yaoi são chamadas fujoshi e são em sua maioria mulheres jovens. Por outro lado, temos os shounen-ai, ou mangás gays que lidam com um amor gay que é emocional e romântico. 

 Em ambas as variedades, a música une os garotos, o cenário é geralmente uma escola, a cidade é outro personagem no desdobramento da trama. As redes sociais guiam a vida dos personagens: o mundo de curtidas e compartilhamentos afetam-nos diariamente. 

 Isso é visto muito claramente na série 2Gether, dirigida por Weerachit Thongjila, que foi exibida de fevereiro a maio de 2020. A série é sobre Wat (Vachirawit Chivaaree, apelidado Bright), um jogador de futebol e músico, que conhece Tine (Metawin Opas-iamkajorn, apelidado Win), um aspirante a músico. Wat é taciturno e melancólico, enquanto Tine é radiante e alegre. O elenco captura perfeitamente as diferenças nas características dos personagens. Há charme e química entre os dois rapazes, que às vezes usam camisetas similares, ou simplesmente olham profundamente nos olhos um do outro, ou sentem pontadas de ciúme da mesma forma que casais sentem. 

Exibida quase quando os países do Sudeste Asiático estavam começando a quarentena devido à pandemia, a série acumulou mais de dez milhões de visualizações por episódio no Youtube. Os comentários no Twitter explodiram e sites de fãs alastraram-se pelo Facebook e Youtube. A GMMTV da Tailândia sabiamente subiu a série na Internet, com legendas em inglês, quase ao mesmo tempo em que ela foi exibida na televisão tailandesa. O efeito foi eletrizante: as linhas para conversas que eram abertas assim que a série era lançada zumbiam com as reações do público. E adivinhem qual país teve as reações mais apaixonadas, mais emocionais? O país latino-asiático chamado Filipinas. 

 Por que essa série manteve uma região inteira na palma de sua mão? 2Gether e outras séries BL mostraram o que muitos homens gays não tiveram quando estavam amadurecendo na universidade: grupos de amigos, tanto heterossexuais quanto gays, que os apoiassem abertamente. Isso, e um ambiente em que atos homossexuais não fossem vistos como bizarros ou, no caso das Filipinas católicas, como pecado. A série mostrou que a homossexualidade é tão normal quanto respirar, que famílias podem ser acolhedoras e amorosas, e que a vida vale a pena ser vivida mesmo se alguém ousa ser diferente. E que um personagem gay não precisa morrer em uma série televisiva ou sofrer uma tragédia. 

 O escritor Miguel Poblador disse: “O mero fato de serem dois garotos vivendo momentos tão simples – embora doces – acordou em mim algo que eu tinha posto para dormir há muitos anos. Eu fui compelido a assistir porque eles estavam mostrando momentos com os quais eu fantasiava, mas me foram negados quando estava no colegial e na faculdade. Esses gestos exagerados de romantismo, como receber uma serenata ou ganhar pequenos presentes sem motivo algum, são coisas que meus amigos heterossexuais fizeram quando eram mais jovens, coisas que neguei a mim mesmo por medo. Eu estava vivendo indiretamente o passado que nunca tive. Eu estava compensando o tempo que nunca me foi dado. Eu não teria nem mesmo ousado assistir a algo assim quando estava no colegial, quanto mais tentar vivenciar na vida real. E agora estou vendo com dezenas de milhares de outras pessoas, como se fosse algo normal. Porque é algo normal. Pelo menos mais agora do que era quando eu estava crescendo. 

 “O sucesso desse show e o quão apaixonadamente ele é celebrado na mídia são um testemunho de quão longe nós chegamos em termos de aceitação. O meu coração canta por saber que nós podemos ter essas histórias na mídia dominante. Essas que são piegas e insensatamente felizes e perfeitas, que não terminam com corações partidos ou morte como é frequentemente o caso. Elas lembraram-me que é permitido a nós termos coisas boas também, a despeito do que nos foi dito enquanto crescíamos. É permitido a nós ter alegrias simples e diversões baratas, como a todo mundo.” 

 O escritor Don Kevil Hapal concorda: “Conforta-me pensar que programas assim vão ao menos ajudar a comunidade a conseguir fazer com que pessoas não LGBT consumam e apreciem a mídia queer, o que ainda é um passo em direção à inclusão. Ambos os atores protagonistas parecem entender a causa LGBT. Em sua entrevista recente à ABS-CBN, eles foram até mesmo claros ao dizer que o amor não tem gênero, e isso não é algo que você ouve homens heterossexuais dizerem na televisão todo dia.” 

“Que um programa com dois protagonistas homens tenha ganho tanta popularidade – não, até mesmo o simples fato de que programas assim estejam agora sendo assistidos na televisão – também me dá alguma esperança para o futuro. Vivendo nas Filipinas, há dias em que eu apenas choro frustrado com o quão injusto o sistema pode ser para a comunidade gay. O Estado não apenas falha ao não reconhecer nosso direito de estar com quem amamos, ele também nos nega proteção contra discriminação.” 

 Bem-dito e eu concordo de todo coração. E agora que 2Gether encerrou, eu assisti às outras séries BL: Together With Me, Love by Chance e Dark Blue Kiss. É um universo fantástico e paralelo, sim, e funciona maravilhosamente para o nosso bem-estar mental também.

1. Trocadilho com expressão “Rock and Roll” relacionando-a ao confinamento – lockdown em inglês.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

(TRADUÇÃO) Boys’ Love: o gênero de romance gay televisivo que está tomando o Sudeste Asiático

  Mais uma tradução minha, dessa vez de uma matéria do VICE de junho (leia aqui) escrita por Chad de Guzman. A imagem vem do artigo original.

Boys’ Love: o gênero de romance gay televisivo que está tomando o Sudeste Asiático 

Alguns o veem como uma vitória para a diversidade, enquanto outros temem representações problemáticas da comunidade LGBTQ 

Arte feita por fã de 2Gether

 DANIEL, 30, tem trabalhado de casa em Banten, Indonésia, desde abril. Com medidas de distanciamento social devido à pandemia de coronavírus, os dias se passam com um trabalho árduo sem fim na forma da escrita de relatórios e o envio de e-mails. Mas as sextas-feiras são especiais. Até recentemente, elas eram usadas para esquecer a vida enfadonha sob a quarentena, enquanto esperava um episódio de seu programa televisivo favorito ser lançado às 21h30. Ele sentava em sua cama, entrava no Youtube e esperava por horas com o celular em sua mão até que visse três palavras aparecerem na tela: “2Gether: The Series”. 

 O programa, produzido pelo canal tailandês GMMTV, conta a história de dois garotos universitários fingindo ter um relacionamento para afastar um rapaz gay que acabam apaixonando-se um pelo outro no processo. Como alguém que se identifica como bissexual, isso é tudo que Daniel, que gostaria de poder revelar seu primeiro nome, queria ver enquanto crescia. 

“É como ver uma imagem de mim mesmo”, Daniel contou ao VICE. 

 A televisão indonésia está cheia de “sinetrons”, ou novelas que têm roteiros mirabolantes, música melodramática e efeitos especiais de baixo orçamento. Esses dramas devem aderir aos padrões conservadores do Islã, o que significa não poder haver palavrões, nem roupas que revelem muito e obviamente nenhum relacionamento gay. 

 Enquanto crescia, Daniel nunca se viu representado na mídia, razão pela qual ama 2Gether tanto assim. Ele assistia um episódio três vezes em um dia, mesmo com os mesmos não tendo legendas em sua língua. E ele não está só. 2Gether é popular por todo o Sudeste Asiático, e é apenas o exemplo mais recente de um crescente gênero televisivo chamado Boys’ Love (BL). O nome já diz tudo: no centro de todo programa BL está uma história de amor gay. 

 O sucesso de 2Gether mais cedo esse ano empurrou a popularidade do gênero para além dos seus limites. O programa estreou em fevereiro e tornou-se um sucesso cult já em março, conforme mais pessoas ficaram em casa devido à pandemia. Na Tailândia, a GMMTV comunicou que o programa tinha mais de 100 milhões de visualizações na plataforma de streaming local LINE TV já em 19 de abril. Isso fora o público que viu pela TV ou pelo Youtube. 

 Foi a transmissão ao vivo no Youtube todas as sextas-feiras que cruzou as fronteiras no Sudeste Asiático. De acordo com a empresa de dados de redes sociais Social Blade, o primeiro episódio de 2Gether é um dos mais vistos dentre os mais de 10.000 vídeos da GMMTV no Youtube, agora com mais de 9 milhões de visualizações.

 A hashtag #2GetherTheSeries ficou nos assuntos mais comentados do Twitter na Indonésia, nas Filipinas, na Malásia e no Camboja sempre que novos episódios eram lançados. Os atores principais Vachirawit Chiva-aree e Metawin Opas-iamkajorn também atraíram massivamente seguidores nas redes sociais – Vachirawit tendo 4,3 milhões de seguidores no Instagram e Metawin tendo 3,1 milhões, até o momento. 

“É uma fantasia”, disse Daniel, que não saiu do armário para sua família, sobre o BL. 

“Onde eu moro, quem eu sou... especialmente como muçulmano, é extremamente proibido.” 

 Esses programas são para ele uma forma de viver uma vida que ele sempre desejou, em que ele poderia amar qualquer um livremente e ser amado de volta. Para muitos asiáticos LGBTQs, a ascensão do BL é uma vitória para a representatividade. Mas os programas são populares também entre pessoas heterossexuais, particularmente entre mulheres. 


 ANGGI Anggraeni, uma estudante de 20 anos de Bali, Indonésia, disse que começou a assistir a BLs quando tinha 15 anos, para saber mais sobre pessoas LGBTQ. 

“A primeira série tailandesa que eu vi foi Hormones, e nela havia uma garoto confuso sobre sua orientação sexual e que gostava tanto de seu amigo quanto de sua amiga,” disse Anggraeni. “Isso abriu os meus olhos.” 

 Phim Jena, 22, uma estudante no Camboja, começou a assistir aos BL aos 14 anos. Ela é fã de suas tramas “eu e você contra o mundo”. 

“O comum em programas BL é que eles tentam nos mostrar que o amor entre pessoas do mesmo sexo também é amor,” Phim explicou. 

 Ela disse que tem visto um aumento na aceitação de LGBTQs no Camboja na última década, apesar da visão de mundo homofóbica de gerações mais velhas. 

 A imagem do BL como um ícone da diversidade é relativamente nova. Na verdade, ele nunca foi feito para a comunidade LGBTQ. O gênero tem suas origens no Japão de 1970, quando era chamado de “yaoi”, que significa literalmente “sem clímax, sem queda, sem sentido”. Na época, isso referia-se aos mangás, animês e séries que eram feitos exclusivamente por mulheres e para mulheres. Eles pareciam-se mais com um soft porn sem um roteiro claro do que com as séries adolescentes que são hoje. 

 Um estudo de 2018 descobriu que mulheres gostam de yaoi porque ele vai contra os estereótipos de gênero e as mensagens patriarcais de relacionamentos heterossexuais. Para algumas mulheres, as cenas de sexo em yaois parecem também menos ameaçadoras do que aquelas que apresentam casais heterossexuais, porque a falta de uma personagem feminina de alguma forma faz elas parecerem menos íntimas e pessoais. Cópias do conteúdo BL eventualmente se espalharam mundo afora pela Internet durante os anos 90, criando um culto de seguidoras na China, em Taiwan e na Tailândia.

 “Antes que as fãs tailandesas criassem sua própria ficção original yaoi ou BL, elas leram mangas BL traduzidos do Japão,” disse Natthanai Prassanam, um professor de literatura na Universidade Kasetsart de Bangkok. “Era algo bastante popular no final dos anos 90 e início dos anos 2000”. 

 O gênero televisivo explodiu em popularidade na Tailândia em 2014, com o programa Love Sick: The Series. De acordo com Prassanam, os 14 episódios do programa tiveram uma média de 3,8 milhões de visualizações cada no Youtube. O sucesso levou outras empresas a produzirem mais séries BL como SOTUS: The Series (2016), 2Moons: The Series (2017) e Love By Chance (2018). Agora, tramas BL são algo básico nas novelas tailandesas. 

 Na China, o gênero ficou popular em 2016, com a série online Addicted. Os produtores do programa disseram que o mesmo tinha 10 milhões de visualizações no dia seguinte ao seu lançamento inicial. Contudo, para o espanto de seus fãs, a série foi retirada da plataforma de streaming iQiyi, três dias antes de seu décimo quinto e último episódio ser transmitido. Os showrunners apenas se referiram ao “contexto mais amplo da China” ao explicarem a retirada. Os fãs então subiram os episódios com legendas no Youtube, onde agora eles têm uma média de 500.000 visualizações cada. 

 O BL também está crescendo nas Filipinas, em que a ABS-CBN, a maior rede de mídia do país, está para lançar 2Gether em seu canal a cabo e em sua plataforma online. Em junho, a emissora também mostrou os pôsteres promocionais de uma série BL filipina que está para estrear chamada Hello, Stranger. 

 Enquanto muitos veem a popularidade do gênero como boas notícias para pessoas LGBT, alguns membros da comunidade são mais céticos quanto a isso. 


 JESUS Falcis, um filipino de 33 anos que se identifica como gay, disse que embora ele assista séries BL, ele também acha que elas perpetuam papéis de gênero antiquados. 

 Eles escrevem personagens (gays) de uma forma que parece que há um marido e uma esposa,” disse Falcis, explicando que os programas tendem a estereotipar homens gays como ou “ativo (dominante)” ou “passivo (submissivo)”. 

 Personagens bidimensionais como a mulher transexual que é apenas simbólica ou a insuportável antagonista também são muitos comuns. 

 Aam Anusorn Soisa-ngim diretor tailandês que trabalhou em uma série BL, disse que arquétipos estão presentes em muitos BL tailandeses e podem ser muito problemáticos. Por exemplo, muitas das histórias de amor começam com um homem abusando sexualmente ou estuprando outro, apenas para o sobrevivente apaixonar-se por seu estuprador. 

“É desrespeitoso,” disse Soisa-ngim. “Há zero direitos humanos. É muito ruim.” 

 E embora os programas BL tenham quebrado barreiras para a comunidade LGBTQ, ele disse que, nos bastidores, há muito trabalho a ser feito. Ele contou um incidente durante a gravação de uma série BL, quando membros da equipe fingiram vomitar enquanto os dois protagonistas beijavam-se. Soisa-ngim também disse que alguns atores tailandeses heterossexuais apenas usam o BL como um degrau para suas carreiras. 

“Eles atuam em apenas uma ou duas séries e depois ficam ‘Ah, eu vou dizer adeus ao BL. Eu não vou mais atuar em BL,’” disse ele. 

 Outros cineastas dizem que séries BL só podem ser de fato inclusivas se elas forem criadas com a comunidade LGBTQ em mente. 

 Um dos primeiros programas BL prestes a ser lançado nas Filipinas é feito por um time em que a maioria dos membros são pessoas LGBTQ – do roteirista Juan Miguel Severo aos diretores e compositores musicais. 

 “Todo o time passará por um workshop de sensibilidade ao gênero e uma SOGIE (discussão educacional) antes da parte oficial da produção”, Severo contou ao VICE. 

Embora 2Gether ainda tenha alguns arquétipos, os fãs dizem que ele é mais genuíno e captura a experiência de transição à vida adulta de pessoas gays. O último episódio da série foi ao ar em 15 de maio, mas em primeiro de junho a GMMTV anunciou que lançaria cinco episódios adicionais em uma antologia chamada Still 2Gether. 

Como sempre, Daniel disse que estará em casa na Indonésia, aguardando esses episódios saírem semanalmente, com a esperança de que, um dia, ele também experienciará o amor que vê em tela.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

(TRADUÇÃO) Tudo o que você precisa saber sobre a florescente cultura Boys’ Love da Tailândia

 Tradução que fiz de uma matéria de junho da Time Out Bangkok. O link original está aqui. Todas as imagens são do artigo deles.

 Tudo o que você precisa saber sobre a florescente cultura Boys’ Love da Tailândia

As séries Boys’ Love da Tailândia estão em ascensão e podem tornar-se o principal produto de entretenimento exportado do país 

 Para muitos de nós, as noites de sexta-feira durante a quarentena significaram maratonar novos programas na Netflix. Mas para milhões de fãs de Boys’ Love (Y em tailandês) ao redor da Ásia, essas foram noites para fixar seus olhos nas telas para assistir ao episódio mais recente de 2gether: The Series, indiscutivelmente a série Boys’ Love mais popular da Tailândia. 


 LINETV/GMMTV

 Ao longo das 13 semanas em que a série foi exibida, a hashtag #2gethertheSeries ficou no topo dos assuntos mundiais do Twitter – a rede social favorita dos fãs de Boys’ Love – e desencadeou milhões de conversas virtuais sobre a série em várias línguas, do tailandês ao chinês e ao inglês. A série foi tão popular que seus atores principais, os novatos Vachirawit “Bright” Cheva-aree e Metawin “Win” Opas-iamkajorn, ganharam mais de um milhão de seguidores do mundo inteiro no Instagram em apenas algumas semanas. 2gether: The Series tornou-se o fenômeno global que ninguém esperava. 

Quando garotos amam garotos 

 A presença de séries Boys’ Love, um gênero dramático único que retrata relações homoeróticas entre personagens masculinos, tem aumentado significativamente em anos recentes. Narrativas que giram em torno de dois garotos em uma relação romântica eram no geral tramas secundárias antes da série de 2014 Love Sick, a qual foi um ponto de virada significante nesse subgênero. Foi provavelmente a primeira vez na história da indústria do entretenimento tailandês que dois garotos com inclinações homossexuais foram apresentados como protagonistas. 

 Desde então, outros jogadores entraram nesse mercado, inclusive a GMMTV, uma subsidiária do maior conglomerado de entretenimento da Tailândia, a GMM Grammy, e produtora de 2gether: The Series. 


GMMTV

 Noppanat Chaiwimol, um diretor e produtor da GMMTV (foto acima), conta-nos que a empresa escolheu primeiro um caminho menos óbvio ao inserir personagens Boys’ Love em séries heterossexuais (Tay-New de Kiss e Pik-Low de Senior Secret Love, por exemplo). Após receber um feedback positivo, a potência do entretenimento decidiu ir até o fim. Sotus foi a primeira tentativa. “Naquela época, era controverso para uma grande empresa do entretenimento colocar dois caras como um casal. Bem, a série acabou por ser um grande sucesso e Krist-Singto (o ship dos atores da série) ainda está aí hoje, mesmo que já tenha passado por volta de quatro ou cinco anos”. 

 A LINETV, a plataforma de streaming gratuita que tem transmitido séries Boys’ Love como Make it Right e Sotus desde 2016, diz que a quarentena do coronavírus trouxe o maior aumento em visualizações de sua história. De um índice de audiência de cinco porcento em 2019, só no primeiro trimestre de 2020 já houve um pico de 34 porcento. “Boys’ Love não é mais um subgênero. Tornou-se mainstream.”, diz Kanop Supamanop, vice-presidente da LINE para negócios relativos a conteúdo. A LINE TV sozinha atualmente tem em seu catálogo 33 – e contando – séries Boys’ Love tailandesas em sua plataforma, fazendo dela a maior produtora desse subgênero na Tailândia. 

Lendo amor nas entrelinhas 

 Como muitas séries Boys’ Love anteriores a ela, 2gether: The Series é baseada em um romance homônimo. 

 Boys’ Love tailandeses são uma apropriação local do yaoi, a ficção homoerótica cuja forma é originária do Japão e gira em torno de narrativas românticas entre um garoto masculino (chamado de seme) e um mais feminino (chamado de uke). Tradicionalmente, o yaoi é criado, consumido e favorecido por mulheres. Essa subcultura japonesa chegou à Tailândia uma década atrás na forma de romances. A comunidade de leitoras de Boys’ Love floresceu bem antes de sua cultura chegar à tela pequena. 

“Começou como cultura underground, antes de emergir à superfície por volta de 2011 e 2012. O gênero cresceu e desabrochou por volta de 2014-2015.”, diz o Dr. Utain Boonorana, um médico que é também autor de ficção LGBTQ, conhecido por seus pseudônimos, Patrick Rangsimant e Mor Tood (“Doutor Homo”, em tailandês). Dentre os romances Boys’ Love que ele escreveu, está incluído o My Ride, I Love You, o qual foi traduzido para o inglês e está para se tornar uma série televisiva. 


Editora Deep

 Entre em qualquer livraria grande de Bangkok – assim como de outras das principais províncias – agora e você verá algo que há alguns anos seria novidade: romances Boys’ Love tomando mais e mais prateleiras. 

 Observando o crescimento da literatura Boys’ Love, a editora com décadas de existência Sataporn Books aderiu à onda em 2018 e lançou um selo novo chamado Deep. Até o momento, o Deep lançou 70 títulos Boys’ Love, e 20 deles estão sendo produzidos para se tornarem séries televisivas. “Acho que a sociedade parece estar aceitando mais a ficção Boys’ Love.”, diz Jetiya Lokitsataporn, a dona da Sataporn Books. Ela continua, explicando que a indústria de Boys’ Love tem visto um tremendo crescimento porque mais produtores, incluindo de canais grandes, têm mostrado interesse em transformar esses romances em séries televisivas. A existência de mais séries implica em uma melhor vendagem dos romances. 

Jetiya aponta também que tem visto menos histórias sobre estudantes e mais sobre pessoas que têm carreiras de fato. “Há também mais ficção de fantasia, como aquelas em que homens podem ficar grávidos.  Se é tratada como fantasia, pode-se simplesmente aceita-la (como entretenimento).” O Deep também está vendendo os direitos de seus romances para editoras internacionais em Taiwan, Japão e Coréia do Sul. 

A fórmula (clichês) que garante sucesso 

 Similar a muitas outras mídias de Boys’ Love tailandesas de sucesso, 2gether: The Series centra-se em estudantes universitários vivendo enredos irreais e tomando parte em conversas um tanto irracionais. São esses elementos que parecem garantir o sucesso de séries Boys’ Love – quer dizer, com o adicional de ter personagens atraentes e com química em tela. Outras séries de sucesso como TharnType e En of Love também caem nesses clichês. 

A maioria das leitoras e autoras são adolescentes, então a vida em faculdade é o que está mais próximo da vida real delas” diz Utain, acrescentando “Pré-adolescentes e adolescentes (as quais são os principais grupos alvos) não seriam capazes de entender como uma mulher de 30 e poucos anos frustrada realmente se sente em relação à vida... elas não conseguirão empatizar”. 


LINE TV

Curiosamente, todos os protagonistas de Boys’ Love vêm da mesma demografia. Uma paródia dessa subcultura apontou que a maioria dos protagonistas são estudantes de engenharia ou de medicina que provêm de meios abastados. 

 O pesquisador Dr. Ronnayuth Euatrirat, que está estudando o fenômeno do Boys’ Love tailandês, explica que talvez isso se deva ao fato de muitos romances Boys’ Love terem autoria feminina. “Achamos que personagens de Boys’ Love refletem os desejos de uma mulher jovem. Um estudante de engenharia, por exemplo, é uma típica personificação desejável de um homem de quem se pode depender. Esses personagens também têm uma aparência masculina e vêm de meios ricos. Esses padrões respondem às necessidades das mulheres.” 

A GMMTV, agora a produtora mais conhecida de séries Boys’ Love tailandesas, está se arriscando ao mudar esses padrões clichês. Mais tarde esse ano, ela lançará A Tale of Thousand Stars, sua primeira série Boys’ Love que não apresenta um adolescente, nem um estudante de engenharia, como protagonista. Em vez disso, haverá uma relação florescente entre um professor voluntário e um oficial de silvicultura. Noppanat, que está escrevendo o roteiro e dirigindo a série, quer explorar novas possibilidades no campo do Boys’ Love. Apesar de a série ainda estar para estrear, o material promocional tem recebido respostas positivas de fãs de Boys’ Love que estão começando a cansar de fantasias adolescentes. 

LGBTQ e Boys’ Love: dois universos paralelos? 

 O amplo acolhimento e popularidade dos Boys’ Love tailandeses deve muito à liberdade de expressão de gênero na Tailândia. Mas estaria a comunidade LGBTQ beneficiando-se de fato da crescente popularidade de romances e séries Boys’ Love? 

 Alguns defensores LGBTQ locais rejeitam a cultura Boys’ Love, dizendo que a mesma não reflete as vidas reais de indivíduos LGBTQ e mesmo retrata uma percepção falsa da comunidade, mas os especialistas com quem falamos não concordam completamente com isso. 

 Noppanat reconhece que esse é um tópico o qual se pode passar dias discutindo. O produtor e diretor veterano, que está pesquisando sobre Boys’ Love há mais de cinco anos, não acha que essas séries sejam “fantasiosas demais” e não reflitam apropriadamente a comunidade LGBT. 


GMMTV

“Todas as séries Boys’ Love giram em torno de relações entre pessoas do mesmo sexo, então pessoalmente eu acho que elas representam a diversidade. Elas são uma subparte do gênero LGBTQ. Contudo, ao fim e ao cabo, nós estamos falando do gênero Boys’ Love que foca em fantasia romântica e não em questões LGBTQ mais sérias como igualdade e HIV. Estando no meio dessa longa discussão por tanto tempo, eu tive de achar o balanço certo entre as necessidades do público e o que é preciso ser feito,” ele explica. “Muitos indivíduos LGBT possivelmente vivem suas vidas como aqueles (em séries Boys’ Love). Vê-se casais do mesmo sexo jovens em todos os lugares, certo? A sociedade está mais aberta e eles podem não ter de superar tantos obstáculos quanto aqueles que vieram antes. Então se você levar isso em conta, séries Boys’ Love poderiam ser (exemplos da sociedade) reais.” 

 Ele mesmo um defensor dos direitos LGBT, Nopparat tenta inserir uma mensagem sobre aceitação de gênero em toda série Boys’ Love que ele produz. Ele é também a mente por trás das produções LGBTQ da GMMTV, muitas das quais têm sido elogiadas por suas narrativas complexas e instigantes, inclusa aí Gay OK Bangkok. “Nós vemos narrativas novas, mais diversidade surgindo a cada dia. Por exemplo, estou muito interessado no gênero fluido sobre o qual os jovens têm falando ultimamente. O mundo dos LGBTQs é sensível e precisa ser mais explorado.” 

 O efeito borboleta: as consequências inesperadas da popularidade 

 Há alguns meses, uma das jovens estrelas protagonistas de 2gether: The Series postou comentários em uma rede social que alegadamente criticavam o poder que a China tem sobre Hong Kong e Taiwan. Embora seus comentários tenham claramente sido mal interpretados e tirados fora de contexto, eles não impediram que uma verdadeira guerra explodisse no Twitter. Usuários tailandeses e chineses, fãs de Boys’ Love e mesmo simples detratores trocaram igualmente insultos. Não demorou muito até que hongkongoneses e taiwaneses se metessem na conversa e se juntassem com os tailandeses em uma coalisão digital chamada “Aliança do Chá com Leite”. Até mesmo o famoso ativista político de Hong Kong Joshua Wong mostrou seu suporte à afiliação. 

 Quando a embaixada da China na Tailândia emitiu uma declaração em sua página do Facebook (a qual não foi bem recebida por internautas), todos perceberam que as coisas tinham saído do controle. O assunto controverso virou manchete de muitas agências de notícias, inclusive do Reuters. 

 Mas como tudo no universo do Twitter, o fogo apagou tão rápido quando iniciou. Após algumas semanas, a disputa online morreu, mas acabou deixando a série mais popular do que nunca. 

O soft power em construção

 A aplicação da cultura de uma nação como um soft power (poder brando), uma ferramenta de relação internacional persuasiva e indireta, tornou-se uma prática global comum. Por exemplo, o k-pop tem sido há anos um dos principais produtos exportados da Coréia do Sul, repercutindo – e gerando dinheiro – mundo afora. Em 2018, foi notificado que as exportações de materiais culturais coreanos valiam US$9,55 bilhões. 

Similarmente, o Boys Love tailandês está tornando-se mais popular pela região, mas poderia ele torna-se tão influente a ponto de afetar relações pan-nacionais e eventualmente evoluir para um novo soft power da Tailândia? 

 “A Coréia do Sul está exportando a cultura do k-pop e, quer saber, nós agora estamos exportando séries Boys’ Love,” diz Utain, acrescentando que fãs de Boys’ Love ao redor do mundo elogiaram as versões tailandesas como algumas das melhores do mundo. “Há comunidades que monitoram as séries Boys’ Love tailandesas. Pode haver uma nova página do Facebook surgindo assim que sair a notícia do lançamento de uma nova série Boys’ Love.” 


GMMTV

 Pouco após o encerramento de 2gether: The Series, a GMMTV anunciou uma série de eventos virtuais com fãs com a participação de protagonistas de outras séries Boys’ Love – e com moderação em várias línguas, ainda por cima. Os ingressos foram vendidos mundialmente. Não é preciso ser economista para dizer que a GMMTV definitivamente obterá um lucro robusto. 

“Estou muito confiante na qualidade das séries Boys’ Love feitas por muitas produtoras tailandesas. 2gether: The Series, por exemplo, provou-se bem-sucedida,” diz Noppanat. “Foi a primeira vez que nós vimos oportunidades em novos mercados. América do Sul, Europa, o hemisfério ocidental. 2gether: The Series foi o estudo de caso (para provar) a todos nós que poderia ir além dos fãs de Boys’ Love."

ARTIGO ESPECIAL: MOTO HAGIO E AYA KANNO CONVERSAM SOBRE MANGÁS HISTÓRICOS E PROTAGONISTAS MULHERES

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