Tradução que fiz de uma matéria de junho da Time Out Bangkok. O link original está aqui. Todas as imagens são do artigo deles.
Tudo
o que você precisa saber sobre a florescente cultura Boys’ Love da Tailândia
As séries Boys’ Love da Tailândia estão
em ascensão e podem tornar-se o principal produto de entretenimento exportado
do país
Para muitos de nós, as noites de sexta-feira durante
a quarentena significaram maratonar novos programas na Netflix. Mas para milhões
de fãs de Boys’ Love (Y em tailandês) ao redor da Ásia, essas foram noites para
fixar seus olhos nas telas para assistir ao episódio mais recente de 2gether: The Series, indiscutivelmente a
série Boys’ Love mais popular da Tailândia.

LINETV/GMMTV
Ao longo das 13 semanas em que a série foi exibida,
a hashtag #2gethertheSeries ficou no topo dos assuntos mundiais do Twitter – a rede
social favorita dos fãs de Boys’ Love – e desencadeou milhões de conversas virtuais
sobre a série em várias línguas, do tailandês ao chinês e ao inglês. A série
foi tão popular que seus atores principais, os novatos Vachirawit “Bright” Cheva-aree e Metawin “Win” Opas-iamkajorn,
ganharam mais de um milhão de seguidores do mundo inteiro no Instagram em
apenas algumas semanas. 2gether:
The Series tornou-se o fenômeno global que ninguém esperava.
Quando garotos amam garotos
A presença de séries Boys’ Love, um gênero dramático
único que retrata relações homoeróticas entre personagens masculinos, tem
aumentado significativamente em anos recentes. Narrativas que giram em torno de
dois garotos em uma relação romântica eram no geral tramas secundárias antes da
série de 2014 Love Sick, a qual foi
um ponto de virada significante nesse subgênero. Foi provavelmente a primeira
vez na história da indústria do entretenimento tailandês que dois garotos com
inclinações homossexuais foram apresentados como protagonistas.
Desde então, outros jogadores entraram nesse
mercado, inclusive a GMMTV, uma subsidiária do maior conglomerado de
entretenimento da Tailândia, a GMM Grammy, e produtora de 2gether: The Series.

GMMTV
Noppanat
Chaiwimol, um diretor e produtor da GMMTV (foto acima), conta-nos que a empresa
escolheu primeiro um caminho menos óbvio ao inserir personagens Boys’ Love em
séries heterossexuais (Tay-New de Kiss
e Pik-Low de Senior Secret Love, por
exemplo). Após receber um feedback positivo, a potência do entretenimento
decidiu ir até o fim. Sotus foi a primeira tentativa. “Naquela época, era
controverso para uma grande empresa do entretenimento colocar dois caras como
um casal. Bem, a série acabou por ser um grande sucesso e Krist-Singto (o ship
dos atores da série) ainda está aí hoje, mesmo que já tenha passado por volta de
quatro ou cinco anos”.
A LINETV, a
plataforma de streaming gratuita que tem transmitido séries Boys’ Love como Make it Right e Sotus desde 2016, diz que a quarentena do coronavírus trouxe o maior
aumento em visualizações de sua história. De um índice de audiência
de cinco porcento em 2019, só no primeiro trimestre de 2020 já houve um pico de
34 porcento. “Boys’ Love não é mais um subgênero. Tornou-se mainstream.”, diz Kanop Supamanop,
vice-presidente da LINE para negócios relativos a conteúdo. A LINE TV sozinha
atualmente tem em seu catálogo 33 – e contando – séries Boys’ Love tailandesas
em sua plataforma, fazendo dela a maior produtora desse subgênero na Tailândia.
Lendo
amor nas entrelinhas
Como muitas séries Boys’ Love anteriores a ela, 2gether: The Series
é baseada em um romance homônimo.
Boys’ Love tailandeses são uma apropriação
local do yaoi, a ficção homoerótica
cuja forma é originária do Japão e gira em torno de narrativas românticas entre
um garoto masculino (chamado de seme)
e um mais feminino (chamado de uke). Tradicionalmente,
o yaoi é criado, consumido e favorecido por mulheres. Essa subcultura japonesa
chegou à Tailândia uma década atrás na forma de romances. A comunidade de
leitoras de Boys’ Love floresceu bem antes de sua cultura chegar à tela pequena.
“Começou
como cultura underground, antes de emergir à superfície por volta de 2011 e
2012. O gênero cresceu e desabrochou por volta de 2014-2015.”, diz o Dr. Utain
Boonorana, um médico que é também autor de ficção LGBTQ, conhecido por seus
pseudônimos, Patrick Rangsimant e
Mor Tood (“Doutor Homo”, em tailandês). Dentre os romances Boys’ Love que ele
escreveu, está incluído o My Ride, I Love
You, o qual foi traduzido para o inglês e está para se tornar uma série
televisiva.

Editora Deep
Entre em
qualquer livraria grande de Bangkok – assim como de outras das principais províncias
– agora e você verá algo que há alguns anos seria novidade: romances Boys’ Love
tomando mais e mais prateleiras.
Observando
o crescimento da literatura Boys’ Love, a editora com décadas de existência
Sataporn Books aderiu à onda em 2018 e lançou um selo novo chamado Deep. Até o
momento, o Deep lançou 70 títulos Boys’ Love, e 20 deles estão sendo produzidos
para se tornarem séries televisivas. “Acho que a sociedade parece estar
aceitando mais a ficção Boys’ Love.”, diz Jetiya Lokitsataporn, a dona da Sataporn
Books. Ela continua, explicando que a indústria de Boys’ Love tem visto um
tremendo crescimento porque mais produtores, incluindo de canais grandes, têm
mostrado interesse em transformar esses romances em séries televisivas. A
existência de mais séries implica em uma melhor vendagem dos romances.
Jetiya aponta também que tem visto menos histórias
sobre estudantes e mais sobre pessoas que têm carreiras de fato. “Há também
mais ficção de fantasia, como aquelas em que homens podem ficar grávidos. Se é tratada como fantasia, pode-se simplesmente
aceita-la (como entretenimento).” O Deep também está vendendo os direitos de
seus romances para editoras internacionais em Taiwan, Japão e Coréia do Sul.
A fórmula
(clichês) que garante sucesso
Similar a
muitas outras mídias de Boys’ Love tailandesas de sucesso, 2gether: The Series
centra-se em estudantes universitários vivendo enredos irreais e tomando parte em conversas um tanto irracionais. São esses elementos que parecem garantir o
sucesso de séries Boys’ Love – quer dizer, com o adicional de ter personagens atraentes
e com química em tela. Outras séries de sucesso como TharnType e En of Love
também caem nesses clichês.
“A
maioria das leitoras e autoras são adolescentes, então a vida em faculdade é o
que está mais próximo da vida real delas” diz Utain, acrescentando “Pré-adolescentes
e adolescentes (as quais são os principais grupos alvos) não seriam capazes de
entender como uma mulher de 30 e poucos anos frustrada realmente se sente em
relação à vida... elas não conseguirão empatizar”.

LINE TV
Curiosamente,
todos os protagonistas de Boys’ Love vêm da mesma demografia. Uma paródia dessa
subcultura apontou que a maioria dos protagonistas são estudantes de engenharia
ou de medicina que provêm de meios abastados.
O pesquisador Dr. Ronnayuth Euatrirat, que está estudando o fenômeno do Boys’
Love tailandês, explica que talvez isso se deva ao fato de muitos romances Boys’
Love terem autoria feminina. “Achamos que personagens de Boys’ Love refletem os
desejos de uma mulher jovem. Um estudante de engenharia, por exemplo, é uma
típica personificação desejável de um homem de quem se pode depender. Esses
personagens também têm uma aparência masculina e vêm de meios ricos. Esses
padrões respondem às necessidades das mulheres.”
A GMMTV, agora a produtora mais conhecida de
séries Boys’ Love tailandesas, está se arriscando ao mudar esses padrões clichês.
Mais tarde esse ano, ela lançará A Tale
of Thousand Stars, sua primeira série Boys’ Love que não apresenta um
adolescente, nem um estudante de engenharia, como protagonista. Em vez disso, haverá
uma relação florescente entre um professor voluntário e um oficial de
silvicultura. Noppanat, que está escrevendo o roteiro e dirigindo a série, quer
explorar novas possibilidades no campo do Boys’ Love. Apesar de a série ainda
estar para estrear, o material promocional tem recebido respostas positivas de
fãs de Boys’ Love que estão começando a cansar de fantasias adolescentes.
LGBTQ e
Boys’ Love: dois universos paralelos?
O amplo
acolhimento e popularidade dos Boys’ Love tailandeses deve muito à liberdade de
expressão de gênero na Tailândia. Mas estaria a comunidade LGBTQ beneficiando-se
de fato da crescente popularidade de romances e séries Boys’ Love?
Alguns
defensores LGBTQ locais rejeitam a cultura Boys’ Love, dizendo que a mesma não
reflete as vidas reais de indivíduos LGBTQ e mesmo retrata uma percepção falsa
da comunidade, mas os especialistas com quem falamos não concordam
completamente com isso.
Noppanat reconhece
que esse é um tópico o qual se pode passar dias discutindo. O produtor e
diretor veterano, que está pesquisando sobre Boys’ Love há mais de cinco anos,
não acha que essas séries sejam “fantasiosas demais” e não reflitam
apropriadamente a comunidade LGBT.

GMMTV
“Todas as séries Boys’ Love giram em torno de
relações entre pessoas do mesmo sexo, então pessoalmente eu acho que elas
representam a diversidade. Elas são uma subparte do gênero LGBTQ. Contudo, ao
fim e ao cabo, nós estamos falando do gênero Boys’ Love que foca em fantasia
romântica e não em questões LGBTQ mais sérias como igualdade e HIV. Estando no
meio dessa longa discussão por tanto tempo, eu tive de achar o balanço certo
entre as necessidades do público e o que é preciso ser feito,” ele explica. “Muitos
indivíduos LGBT possivelmente vivem suas vidas como aqueles (em séries Boys’
Love). Vê-se casais do mesmo sexo jovens em todos os lugares, certo? A
sociedade está mais aberta e eles podem não ter de superar tantos obstáculos
quanto aqueles que vieram antes. Então se você levar isso em conta, séries Boys’
Love poderiam ser (exemplos da sociedade) reais.”
Ele mesmo
um defensor dos direitos LGBT, Nopparat tenta inserir uma mensagem sobre
aceitação de gênero em toda série Boys’ Love que ele produz. Ele é também a
mente por trás das produções LGBTQ da GMMTV, muitas das quais têm sido
elogiadas por suas narrativas complexas e instigantes, inclusa aí Gay OK Bangkok. “Nós vemos narrativas novas,
mais diversidade surgindo a cada dia. Por exemplo, estou muito interessado no
gênero fluido sobre o qual os jovens têm falando ultimamente. O mundo dos LGBTQs é sensível e precisa ser mais explorado.”
O efeito borboleta: as consequências
inesperadas da popularidade
Há alguns
meses, uma das jovens estrelas protagonistas de 2gether:
The Series postou comentários em uma rede social que
alegadamente criticavam o poder que a China tem sobre Hong Kong e Taiwan.
Embora seus comentários tenham claramente sido mal interpretados e tirados fora
de contexto, eles não impediram que uma verdadeira guerra explodisse no
Twitter. Usuários tailandeses e chineses, fãs de Boys’ Love e mesmo simples
detratores trocaram igualmente insultos. Não demorou muito até que
hongkongoneses e taiwaneses se metessem na conversa e se juntassem com os
tailandeses em uma coalisão digital chamada “Aliança do Chá com Leite”. Até
mesmo o famoso ativista político de Hong Kong Joshua Wong mostrou seu suporte à
afiliação.
Quando a embaixada da China na Tailândia
emitiu uma declaração em sua página do Facebook (a qual não foi bem recebida por
internautas), todos perceberam que as coisas tinham saído do controle. O
assunto controverso virou manchete de muitas agências de notícias, inclusive do
Reuters.
Mas como tudo no universo do Twitter, o fogo apagou
tão rápido quando iniciou. Após algumas semanas, a disputa online morreu, mas
acabou deixando a série mais popular do que nunca.
O soft
power em construção
A
aplicação da cultura de uma nação como um soft
power (poder brando), uma ferramenta de relação internacional persuasiva e
indireta, tornou-se uma prática global comum. Por exemplo, o k-pop tem sido há
anos um dos principais produtos exportados da Coréia do Sul, repercutindo – e gerando
dinheiro – mundo afora. Em 2018, foi notificado que as exportações de materiais
culturais coreanos valiam US$9,55 bilhões.
Similarmente, o Boys Love tailandês está tornando-se
mais popular pela região, mas poderia ele torna-se tão influente a ponto de
afetar relações pan-nacionais e eventualmente evoluir para um novo soft power da Tailândia?
“A Coréia
do Sul está exportando a cultura do k-pop e, quer saber, nós agora estamos
exportando séries Boys’ Love,” diz Utain, acrescentando que fãs de Boys’ Love
ao redor do mundo elogiaram as versões tailandesas como algumas das melhores do
mundo. “Há comunidades que monitoram as séries Boys’ Love tailandesas. Pode haver
uma nova página do Facebook surgindo assim que sair a notícia do lançamento de
uma nova série Boys’ Love.”

GMMTV
Pouco após
o encerramento de 2gether:
The Series, a GMMTV anunciou uma série de eventos virtuais com
fãs com a participação de protagonistas de outras séries Boys’ Love – e com
moderação em várias línguas, ainda por cima. Os ingressos foram vendidos mundialmente.
Não é preciso ser economista para dizer que a GMMTV definitivamente obterá um
lucro robusto.
“Estou
muito confiante na qualidade das séries Boys’ Love feitas por muitas produtoras
tailandesas. 2gether: The Series, por
exemplo, provou-se bem-sucedida,” diz Noppanat. “Foi a primeira vez que nós
vimos oportunidades em novos mercados. América do Sul, Europa, o hemisfério
ocidental. 2gether: The Series foi o
estudo de caso (para provar) a todos nós que poderia ir além dos fãs de Boys’
Love."