É muito difícil encontrar entrevistas online com mangakás anteriores à geração da década de 1970 para traduzir. Tentei achar
algo de Watanabe Masako, de Maki Miyako, de Mizuno Hideko, mas nada. Encontro
no máximo notícias anunciando conversas com outras mangakás ou entrevistas
publicadas em revistas ou livros impressos. Disso vocês tiram minha surpresa quando
descobri que Takahashi Makoto tinha sido entrevistado, em 2020, por um site
dedicado à cidade em que ele mora, Sakura, na província de Chiba. Estava traduzindo
outra coisa, porém resolvi pausar e fazer esta.
Antes de iniciar o texto, só um aviso: o Takahashi responde uma das perguntas falando sobre "jojōga". "Jojōga", que eu traduzi como "ilustrações sentimentais" – mas também poderia ser "ilustrações (ou pinturas) líricas" –, é um conceito criado por Fukiya Kōji para representar um estilo de pintura em que a tristeza escondida dentro do pintor é expressada externamente. Vários artistas o adotaram, inclusive o próprio Takahashi, que o trouxe para o shoujo mangá, como vocês verão na entrevista. O texto original está aqui.
P.S.: a nota sobre os sorrisos arcaicos é do próprio texto japonês, eu só traduzi. Minhas notas estão em azul.
O desenhista de meninas
Takahashi Makoto, que se mudou para Sakura há mais de meio século, fala de seu
amor por cidades em harmonia com a natureza
Meninas adoráveis como princesas e
ornamentos e paisagens desenhados elaboradamente. O artista Takahashi Makoto,
que tem uma visão de mundo única e possui fãs dentro e fora do país, mudou-se
para Sakura aos 29 anos e, desde então, continua morando nesta cidade.
Atualmente atuando como Embaixador da Boa Vontade de Sakura, nós nos
perguntamos o que ele acha deste lugar que se tornou sua segunda casa. Ouvimos
suas histórias na Galeria de Arte Makoto, construída no jardim de sua
casa/ateliê.
O impacto que sofreu
lendo revistas para garotas e seu caminho até o desenho de meninas
Takahashi nasceu na cidade de
Osaka. Estreando como desenhista de shoujo mangás para publicações de aluguel
após se formar no colegial, ele, depois disso, passou a trabalhar em diversas áreas,
fazendo as capas e desenhos internos de revistas como Nakayoshi e Margaret, criando
o design de materiais de papelaria e roupas ocidentais, colaborando com marcas
de roupa etc. Seu tema central são “meninas”. O motivo que o levou a dedicar
completamente sua vida ao caminho dos desenhos de meninas parece estar nas
experiências que teve em sua época de menino.
– Você gosta de desenhar desde a
época em que era criança?
Sim, parece que desde quando eu era
bebê sendo carregado por aí eu já fazia coisas parecidas com desenhos. Ser desenhista,
ou arqueólogo ou astrônomo eram meus sonhos de criança.
– E o que impulsionou você a seguir
pelo caminho de fazer desenhos?
Eu fui criado sendo um dentre três
irmãos, então, tratando-se de livros, estava cercado de materiais para meninos.
Em meio a isso, quando estava na biblioteca da escola no segundo ano do
ginasial, eu vi uma revista para meninas chamada “Himawari” e fiquei impactado
ao ver as ilustrações de Nakahara Jun’ichi e perceber que existia um mundo
assim. Creio que havia meu encantamento de menino por meninas nisso, mas dali
eu passei a ficar fixado nas “ilustrações sentimentais” de Takehisa Yumeji, Takabatake
Kashō, dentre outros, assim como em romances para meninas como “Anne de Green Gables” e “Mulherzinhas” (N.T.: detesto essa tradução para Little Women, mas literalmente todos os títulos em português que achei na Amazon estão assim, então deixei igual).
Naquela época, a profissão de
ilustrador não era algo socialmente aceito para um homem, porém, felizmente, eu
recebi o apoio de meus pais e, em uma conexão fortuita com uma editora de
Osaka, fiz minha estreia como mangaká de livros de aluguel. Depois disso,
passei a receber trabalhos também relacionados a revistas para meninas e
produtos para venda. Foi a época em que eu trouxe as características das “ilustrações
sentimentais” para o shoujo mangá e empreguei todas as minhas forças em abrir
novas possibilidades.
– Eu já ouvi a história de que foi
você quem criou o estilo padrão de desenhar estrelas brilhantes nos olhos de
shoujo mangá.
Parece que um crítico atribuiu a
mim o aperfeiçoamento desse estilo. Os olhos de uma pessoa entusiasmada com
algo brilham, não é? Eu queria expressar isso. Eu também amo o Teatro
Takarazuka e os olhos das atrizes no palco brilham e são belos.
– Dos mangás você passou a dar mais
ênfase ao seu trabalho como ilustrador de capas, desenhos internos nas revistas
e produtos, mas mesmo assim continuou desenhando meninas. De que forma você
encara esses desenhos de meninas?
Há elegância, gentileza, uma
timidez que colore de vermelho as bochechas e uma sensação de asseio. Apesar
disso, é uma presença imponente. São essas as meninas que eu continuo a
desenhar. Como agora nós estamos na época de questionamento de gêneros, não há
muitas ideias pré-fixadas, mas eu penso que a elegância é importante; não só
para mulheres, mas para homens também. Gostaria que os outros sentissem com
meus desenhos, ao menos um pouco, a elegância das pessoas que tem tendido a ser
desdenhada atualmente, se comparado com o passado. Desenho pensando nisso.
Há desenhos seus nos ônibus comunitários que percorrem a cidade |
A mudança para Sakura e a
criação dos filhos
– Parece que você se mudou para
Sakura em 1962, quando tinha 29 anos, né?
Até aquele momento eu estava morando
em Bunkyō, Tóquio, porém um conhecido apresentou-me uma pessoa que constrói
casas em Sakura, então me mudei aqui para Kamishizu. Quando cheguei à estação
Shizu, a frescura do ar era completamente diferente de Tóquio e Osaka e me
lembro de ter inspirado profundamente sem nem pensar. Naquela época, o caminho
da estação até aqui era um matagal repleto de árvores e também não havia muitas
residências. Eu gostei daquele ambiente em que a natureza era deixada por si
mesma.
– Como você passava seu tempo em
Sakura nesse período?
Como me dedicava de corpo e alma ao
meu trabalho, no geral não tinha hobbies, mas na primavera costumava arrancar
os brotos de “tara” (“aralia elata”) nos matagais e no outono capturava os
gafanhotos nos arrozais; eu me curava do cansaço do trabalho dentro da
natureza. Depois que me casei e tive um filho e uma filha, eu sempre ia
caminhar ou pescar.
– Há alguma impressão que ficou dentro
de você com a criação dos seus filhos?
Eu fui parte da Associação de Pais
e Mestres quando minhas crianças estavam no jardim de infância, no fundamental
e no ginasial, e participei do Conselho Cidadão para o Cultivo da Juventude do
Distrito de Shizu desde quando ele foi fundado. Nós conversávamos bastante
sobre como criar as crianças da região de maneira saudável e como tornar nossas
próprias vidas melhores. Em anos recentes, tenho deixado essas atividades para a geração
seguinte, mas mesmo agora ainda dou as caras no Conselho.
Ainda me lembro bem de quando
cumprimentávamos as crianças na cerimônia de entrada no Ensino Fundamental. Nós
colocávamos maçãs em sacos, levávamos para lá e, quando mostrávamos para elas
em cima do palco, os pequenos que tinham perdido a concentração e não tinham se
acalmado olhavam todos para mim e ouviam o que eu tinha a dizer. Depois de
bater um papo do tipo “Onde se criam maçãs?”, “Em lugares frios!”, etc eu usava
a abertura que minha esposa já tinha deixado secretamente para mim e com minhas
mãos abria a mostrava as maçãs; elas ficavam muito felizes. Depois disso, eu
passei a ser chamado de “tio das maçãs” toda vez que me encontrava com elas
pela região.
– É um cumprimento divertido que
mexe com o coração de uma criança, né? Como você gostaria que as crianças de
Sakura de hoje fossem criadas?
Gostaria que fossem criadas para se
tornarem-se adultos que conseguem pensar e agir por si mesmos. As crianças de
hoje em dia têm conhecimento, mas pouca experiência prática. Mesmo que elas tenham a teoria de como pegar besouros-rinocerontes, só há como saber por experiência
prática o quanto você precisa colocar de força ao chutar uma árvore para
fazê-los cair sem machucar o pé. Como há poucas cidades que estão em harmonia
com a natureza nesse nível, eu gostaria que revitalizassem esse ambiente para
que elas acumulassem diversas experiências práticas.
As crianças se inspiram mais em
seus pais do que nós imaginamos. Em vez de mandar que façam isso ou aquilo,
mostre através de seus próprios exemplos. E se ela fizer algo bom, mesmo que
seja pouca coisa, elogie-a. Não seria isso o mais importante na educação de uma
criança?
Eu escapei da morte duas
vezes
– Você abriu esta Galeria de Arte
Makoto em 1989. Há alguma lembrança da época em que você a inaugurou?
Muitas fãs, do Japão e do
estrangeiro, vieram visitá-la. Tanto pais e filhos quanto famílias com 4
gerações de fãs. Mães que sofriam porque a relação com suas filhas havia
diminuído traziam-nas para ver a galeria e as jovens ficavam felizes quando
percebiam que eram os desenhos das várias revistas e produtos que suas mães
tinham. O fato de que, através de “Makoto”, o diálogo entre mães e filhas
aumentou e os sorrisos também me deixa muito feliz enquanto artista.
Como eu sou diplomático e tenho a personalidade
de alguém que conversa bastante, nas épocas em que ia para Tóquio falavam-me com
frequência que um desenhista não deve falar pelos cotovelos. Mas o meu objetivo
é criar desenhos em que as pessoas que veem participem e consigam se divertir. Por
isso valorizo as conversas que tenho com o público.
- Como assim “participem e consigam
se divertir”?
Por exemplo, na versão americana ou
japonesa da adivinhação com flores, há apenas duas opções – gosta ou não gosta
(N.T.: é o bem me quer, mal me quer em português) – mas em francês há cinco que
vão de "gosta um pouco", "gosta passionalmente" até "não gosta nem um pouco" (N.T.:
em francês é Il m'aime un peu, beaucoup, passionnément, à la folie, pas du tout
– Ele me ama um pouco, muito, passionalmente, loucamente e nem um pouco). Ao passar
essa informação, o público no geral brinca disso e se diverte enquanto olha as
flores dentro dos desenhos.
Quando eu ouvi a notícia de que as
abelhas dos Estados Unidos e do Canadá não têm retornado e estão diminuindo, coloquei
abelhas voando em meus desenhos. Os adultos e crianças ficaram absorvidos tentando encontrá-las. Além disso, eu procuro desenhar telhados um pouco nas extremidades
dos desenhos para que saibam, pelo formato, qual país as ilustrações
representam.
O design do pôster da "Festa das Flores (da cidade) de Sakura" é feito por ele todos os anos |
– Suas ilustrações contêm
histórias, não é?
Quando vou desenhar uma princesa,
imagino como se realmente tivesse recebido um pedido dela para fazer um retrato
e desenho conversando. Se for uma princesa da época do rococó, pesquiso acuradamente
as vestimentas e ornamentos do período e tento criar algo esplêndido a ponto de
fazer inveja a Maria Antonieta.
Uma questão à qual me dediquei ao
longo da minha vida foi o desenho de ilustrações em que as expressões das
meninas mudassem conforme o humor de quem as vissem. Eu busco uma representação
como as dos sorrisos arcaicos*, as quais, se a pessoa está feliz, elas alegram-se
junto; se triste, elas parecem estar encorajando gentilmente.
* Expressões com sorrisos
projetados nos lábios que podem ser vistas em esculturas da Grécia Antiga.
– De onde será que vem sua
motivação para dedicar sua vida inteira aos desenhos?
Eu escapei da morte duas vezes. A
primeira vez foi quando nasci em estado de morte aparente. A segunda vez foi
durante o bombardeio de Osaka quando eu estava no Ensino Fundamental. Por algum
motivo, foi o único dia em que nós não conseguimos entrar no prédio da
vizinhança onde sempre nos refugiávamos quando o alarme antiaéreo soava. Como
não havia o que fazer, eu e minha família fugimos para outro prédio. Na manhã
seguinte, esse prédio em que não conseguíramos entrar tinha sido queimado por
bombas incendiárias. Se tivéssemos entrado nele como sempre, não estaríamos
mais com vida.
Na condição de criança, esse foi um
acontecimento que mudou minha visão sobre a vida. Depois disso, passei a pensar
que seguiria pelo caminho que escolhesse por todos os meios possíveis. O ilustrador
Takahashi Makoto é alguém que foi criado em conjunto pelos editores que desde a
minha estreia permitiram-me fazer as coisas de que gostasse e pelos fãs que me apoiaram.
É por ter esse sentimento de gratidão
que eu não ligo para posições sociais ou dinheiro. Mesmo se fosse para passar
todos os dias com um koppen pan e uma caixinha de leite, eu não me importaria. Eu
posso continuar vividamente aqui em Sakura com as coisas de que realmente
gosto. Para mim, essa é a maior felicidade.
Koppen pan é esse pão parecido com o de cachorro-quente comido no Japão com vários recheios |
Takahashi Makoto
Nascido em 1934, em Osaka. Após
estrear com mangás de aluguel, publicou entre outras obras a serialização colorida
“Arashi wo Koete” na revista “Shoujo”. Depois disso, além de desenhar capas,
frontispícios e ilustrações interiores de revistas, produziu diversas
ilustrações de meninas para materiais de papelaria como cadernos de rascunho,
estojos, dentre outros. De 1992 até o momento atual, tem feito regularmente
exibições individuais de trabalhos novos, apresentando suas obras
vigorosamente. Desde 2018, atua como “Embaixador da Boa Vontade de Sakura”.
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