quarta-feira, 20 de novembro de 2024

ENTREVISTA: TAMURA YUMI FALA SOBRE O DORAMA DE "NÃO CHAME DE MISTÉRIO" E AS IDEIAS QUE PERMEIAM SUA OBRA (PARTE 1)

Durante a exibição do dorama “Não Chame de Mistério” em 2022, Tamura Yumi, a autora do mangá, concedeu uma entrevista para a edição online da revista FRaU (Kodansha), publicada em duas partes. Para quem quiser ler o texto em japonês, ele está aqui. Segue a tradução da parte um (os trechos destacados em negrito são todos do original, não meus):

P.S.: Como a entrevista foi feita há dois anos, o mangá já está no volume quatorze.

 


Tamura Yumi de “Não Chame de Mistério” – “Fiquei muito satisfeita ao ver que Suda Masaki pensou com tanto cuidado ao interpretar o Totonō.”

 

O dorama do momento estreado em janeiro de 2022, “Não Chame de Mistério” (Fuji TV, todas as segundas, às 21h) tem mantido, desde seu primeiro capítulo, uma audiência de dois dígitos (audiência medida por domicílio/pesquisa feita pela Video Research) e até 15 de março a retransmissão online ultrapassou 30 milhões de visualizações (32.020.000 visualizações, de acordo com pesquisa feita pela Video Research), sendo o primeiro programa de um canal comercial a conseguir tal feito. Há várias razões para esse sucesso, mas, dentre elas, houve o respeito pela obra original de Tamura Yumi (no presente, 21 de março de 2022, com 10 volumes à venda – além da serialização na revista Flowers) e um cuidado com ela enquanto faziam uma adaptação live action que fosse típica de um dorama. O resultado dessa reação química é certamente grande.

“Como o personagem Kunō Totonō nasceu?”, “Como você se sentiu em relação ao dorama?”. Nós fizemos uma entrevista por e-mail com a mangaká Tamura Yumi, criadora da obra original que ultrapassou 15 milhões de volumes em circulação. Nesta parte um, começamos as perguntas a partir do momento em que ela viu o início da série.

 

“Quando vi o primeiro episódio, chorei um pouco escondida”

 

– Poderia perguntar-lhe novamente sobre a situação e suas impressões de quando viu o primeiro episódio de “Não Chame de Mistério”?

 

Tamura: Eu já havia recebido o episódio um, mas, como queria assistir normalmente quando fosse transmitido pela primeira vez na TV, aguentei e fiquei esperando. O pessoal da editora Flowers preparou um lugar e nós assistimos juntos em uma tela grande. Como não tinha conseguido ir no set de gravações do primeiro capítulo, estava ansiosa para ver como havia saído o resultado. Ahh, eu fiquei completamente absorvida. Assisti totalmente compenetrada. A ponto de nem ter conseguido ouvir a trilha que tocou no meio da história. Quando acabou, nós todos batemos palmas. Achei que ficou maravilhoso. Deu para perceber que tanto a equipe quanto os atores fizeram o dorama com o máximo de dedicação. Eu chorei um pouco escondida. Fiquei muito satisfeita ao ver que Suda Masaki pensou com tanto cuidado ao interpretar Totonō. O pessoal do Departamento de Polícia de Ōdonari também, claro, e especialmente a tremenda atuação de Endō Kenichi. Foi uma noite extremamente feliz.


– Pessoalmente, eu sinto o calor desta obra a ponto de querer agradecer-lhe por ter criado o personagem Kunō Totonō. Poderia explicar-nos o processo que levou ao nascimento dele?

 

Tamura: Normalmente eu costumo desenhar coisas que têm ação aos montes, mas, como esta história era um oneshot no começo, quis tentar algo diferente do que sempre faço. Pensei em desenhar um ambiente fechado focado em uma única situação onde as pessoas apenas falassem. Quando estava refletindo sobre isso, o Totonō apareceu tranquilamente. Não é nem um pouco como se eu tivesse tido dificuldade ao moldá-lo ou tivesse ficado perdida. Ele realmente estava lá tranquilamente. Tentar mudar um pouco meu traço e não colocar o Totonō (o Garo, eu coloquei) fazendo os monólogos que eu normalmente uso bastante foram também pequenas aventuras para mim.

Porém, só no caso do primeiro capítulo, como eu o fiz na forma de oneshot, creio que seja difícil entender o temperamento do protagonista. Após isso, a história virou uma serialização e aos poucos a gentileza dele começou a aparecer, e pudemos ver suas mudanças de sentimento, seus gostos, tanto seu lado interno quanto sua vida cotidiana.

Por isso, deve ter sido difícil para o Suda interpretar o Totonō nessa parte porque havia poucas dicas. É complicado conseguir ler que tipo de pessoa o protagonista é e o que está pensando, embora fale bastante. Suda conseguiu transformar o Totonō em alguém vivo personificando uma sinceridade e usando de uma capacidade de leitura e atuação pouco comuns que podem ser chamadas de geniais. Fico muito feliz que as leitoras estejam chamando-o de Totonō por aí e dando-lhe carinho. Porém mesmo eu ainda estou na jornada para conhecer o personagem.

 

“São respostas próprias para questões sobre as quais eu vinha refletindo há muito, muito tempo.”

 

– Têm surgido muitas vozes de fãs da obra original e de gente que conheceu o enredo pelo dorama afirmando que há verdade nas palavras do protagonista e elas reverberam no coração. Por exemplo, na conversa sobre colocar o lixo para fora, sobre relação entre pais e filhos, sobre bullying, sobre violência doméstica contra criança, sobre assassinato... Quando Kunō causa uma reação ao lançar sua frase de efeito “Isto é algo que sempre pensei”, eu pessoalmente também fico querendo colocar várias marcações enquanto leio. Essas são coisas que você tem pensado por um longo tempo?


Tamura: Por exemplo, “Por que as pessoas não podem matar?” é uma questão que eu vinha pensando há muito, muito tempo. E apresentei uma resposta muito própria do que eu acho neste momento. Talvez ela mude novamente no futuro. São coisas, palavras e casos que ficam na minha cabeça quando eu normalmente vejo o noticiário, assisto a filmes e doramas, relaciono-me com as pessoas etc e então reflito longamente tentando chegar ao âmago do problema. Creio que esteja enraizado em minha natureza fazer esse mergulho profundo. Se for para enredar isso na história de um jeito que faça sentido, eu coloco nas falas.

Porém isso não é exclusivo desta obra, mas algo que tenho feito nas histórias que desenhei até aqui também. É só que desta vez, como essas falas estão concentradas no Totonō, talvez elas acabem se destacando.

 

“É óbvio que as pessoas sejam fracas e quebrem.”

 

– Em relação às palavras sobre bullying do volume 2 (episódio 2 do dorama) e às palavras sobre violência doméstica contra crianças do volume 5 (episódio 6 do dorama), a jornalista Shimazawa Yūko escreveu “A obra ‘Não Chame de Mistério’ realmente diz as coisas como elas são, é impressionante”, dedicando artigos para falar sobre as duas coisas. Parece que ela ficou tão empolgada que comprou todos os volumes. Quanto ao bullying e à violência doméstica contra crianças, sinto que “Não Chame de Mistério” tem como um de seus temas centrais fazer refletir sobre o que é a gentileza. Como você percebe esses dois assuntos?

 

Capa do volume 14

Tamura: Eu não estudei esses assuntos de maneira especializada e apenas desenho sobre as dúvidas que senti e sobre as quais pensei ao viver normalmente a minha vida. Por isso é uma grande honra que uma jornalista especializada nisso tenha pegado meus mangás e eu tomei um susto quando soube. Muito obrigada.

Quanto a essas questões, gostaria que mais pessoas entendessem a importância do cuidado psicológico, o que inclui o controle da raiva. Penso que se conseguissem salvar o lado agressor antes que as coisas saíssem do controlem, evitariam criar vítimas. Seria bom se as pessoas que fazem o sistema pensassem que o ser humano ser fraco e quebrar é algo óbvio, mas que sempre é possível corrigir a rota, curá-lo e que, além disso, não há nada de muito especial nisso.

Acredito que não importa como você pense sobre isso, o problema do bullying está no lado agressor. No caso da violência doméstica, é importante não acuar (financeiramente, psicologicamente) a mãe.

Porém, é preciso apontar: todas essas são questões sobre as quais não dá para se falar como se fosse uma coisa só, são questões difíceis de julgar; e eu tenho consciência de que não posso, por mim mesma, entender a dificuldade de lidar com as situações reais e a angústia das pessoas que são atendidas.

 

Formatação/Texto: Shinmachi Mayumi


terça-feira, 19 de novembro de 2024

O QUE É BOYS LOVE? UMA EXPLICAÇÃO

 

Capa do primeiro volume de "Kaze to Ki no Uta" (Takemiya Keiko)

Desde que o Boys Love tailandês ganhou força, em 2014, um grande número de novos (as) consumidores do gênero surgiu, e tenho reparado que há muita confusão na cabeça das pessoas sobre o que ele é. Já cheguei a ler comentário no Twitter de gente que acredita que isto é algo surgido na Tailândia. Para tentar dissipar um pouco esse engano, peguei um trecho da obra “Boys Love Media in Thailand: Celebrity, Fans, and Transnational Asian Queer Popular Culture” de Thomas Baudinette no qual ele explica o surgimento desse fenômeno. Não há o livro em português, então eu traduzi o trecho:

“No Japão, o BL emergiu historicamente na década de 1970 a partir de mangás para jovens mulheres cujo foco estava em relações românticas e sexuais entre rapazes e entre homens. Na época, esses quadrinhos eram conhecidos como shōnen’ai (o amor de jovens garotos) e eles se tornaram cada vez mais populares entre (principalmente) consumidoras heterossexuais. O gênero foi desbravado especificamente por um grupo de autoras de mangás que incluía Takemiya Keiko, Hagio Moto e Ikeda Riyoko. Inspiradas pelas ficções românticas e pelos filmes da Europa populares no período, assim como pela ficção queer da autora Mori Mari e pela revista gay japonesa “Barazoku”, essas autoras começaram a escrever sobre os amores, frequentemente frustrados, de garotos em cenários europeus chiques e belos. Passando a ser conhecidas, com o tempo, como Grupo do Ano 24 por muitas delas terem nascido no ano 24 da era Showa (1949), essas mulheres tiveram um papel crucial no desenvolvimento mais amplo da cultura de garotas no pós-guerra japonês. Ao longo dos anos 1980 e 1990, muitas autoras amadoras e fãs começaram a produzir suas próprias versões homoeróticas e paródicas de animês e mangás da grande mídia, as quais eram publicadas por elas mesmas em revistas feitas por fãs conhecidas como dōjinshi e vendidas em eventos de fãs como o ‘Comic Market’ (‘komiketto’). Com o tempo, esses trabalhos publicados em revistas feitas por fãs passaram a ser chamados de yaoi, uma contração humorística da frase ‘yama nashi, ochi nashi, imi nashi’ (sem clímax, sem resolução, sem significado) e nessa época yaoi era especificamente entendido como um gênero paródico de obras famosas. Com a profissionalização do BL através de revistas em quadrinhos dedicadas a eles nos anos 1990, suas convenções genéricas se cristalizaram em estratégias representacionais aceitas e tropos narrativos que permanecem centrais até hoje para a cultura popular queer japonesa. A profissionalização do gênero levou a uma suposta explosão de popularidade dele, a qual inundou o mercado japonês com animês, séries televisivas, romances, drama CDs e videogames com temas e narrativas BLs. A propósito, foi durante a comercialização do gênero que o termo ‘Boys Love’ passou a ser o preferido para retratar esta cultura de quadrinhos homoeróticos japoneses. O BL tornou-se um grande negócio em anos recentes, com o tamanho de seu mercado doméstico estimado em aproximadamente ¥212 bilhões em 2014.”

 

BAUDINETTE, Thomas. Boys Love Media in Thailand: Celebrity, Fans, and Transnational Asian Queer Popular Culture. New York: Bloomsbury Publishing, 2023. 21 p.

segunda-feira, 18 de novembro de 2024

ARTIGO ESPECIAL: SHIMIZU REIKO FALA SOBRE SUA CARREIRA COMO MANGAKÁ E A PRIMEIRA EXPOSIÇÃO DE SEUS ORIGINAIS

Há mais ou menos um ano, Shimizu Reiko fez uma exposição em comemoração aos seus 40 anos de carreira e o Comic Natalie publicou um artigo especial com uma entrevista com a autora. Eu o li ano passado e enrolei esse tempo todo para traduzir. Primeiro porque tradução sempre dá trabalho mesmo. Eu traduzo tudo manualmente, sem tradutor online e muito menos inteligência artificial, e falta-me ânimo para fazer às vezes (acabo lendo e deixando o resto sempre para depois). E segundo porque é um artigo enorme, conforme você verão a seguir.

Agora, sinceramente, não sei por que o Comic Natalie não publica mais esse tipo de coisa. Fizeram um com a Kanno Aya e a Hagio Moto – tradução feita por mim aqui – e publicaram esse com a Shimizu, mas não consegui achar outros na época, não. Quem sabe agora, um ano depois, tenha alguma coisa. Procurarei e, caso encontre, traduzirei aqui. Prometo que não demorarei mais tanto tempo.


Uma última nota: os nomes estão todos em ordem japonesa  sobrenome primeiro, seguido de nome próprio. Creio que boa parte do que traduzi está nesse modelo, e resolvi que farei assim sempre a partir de agora porque a ordem invertida foi uma imposição americana na ocupação feita por eles após a Segunda Guerra Mundial. Como eles e o chamado Ocidente (e nós também, por tabela) respeitam a ordem original quando se trata dos chineses e coreanos (Xi Jinping, Kim Jong-um etc), não vejo por que deveria fazer diferente com os japoneses. Algumas revistas acadêmicas americanas têm adotado essa postura também. Caso queiram mais detalhes sobre isso, recomendo o vídeo do Ilha Kaijuu. Segue o artigo.

 


Shimizu Reiko – Exposição de Arte

(Em comemoração a 40 anos de trabalho)

Shimizu Reiko, que completa 40 anos de trabalho artístico, fala sobre os melhores aspectos de sua primeira exposição

 

O evento “Shimizu Reiko – Exposição de Arte”, em comemoração aos 40 anos de carreira da artista, abrirá a partir de 23 de novembro no Sunshine 60 Observatory Tenbo Park. Desde que estreou em 1983 com a obra “Sansaro Story”, a mangaká encantou as leitoras com obras de suspense bem construídos que tiveram por tema ficções científicas, canibalismo, assassinatos grotescos, dentre outros, dando vida a linhas belas e fortes. Nesta exposição de arte, além de ilustrações coloridas de obras representativas como “Kaguya–hime”, “Tsuki no Ko – MOON CHILD” e “Himitsu – TOP SECRET”, haverá também ilustrações feitas antes de sua estreia como mangaká colorindo o local.

Para comemorar a abertura da exposição, o Comic Natalie entrevistou Shimizu. Ela nos expôs suas diversas memórias destes 40 anos, indo desde sua época de menina em que se divertia só de ter um papel branco e um lápis, passando pelo período de pré–estreia como mangaká no qual desenhava suas histórias para enviar às revistas enquanto trabalhava em uma empresa, até o pesadelo que a afligiu na noite anterior à divulgação de “Himitsu – TOP SECRET”. Além de apontar os pontos de destaque de sua exposição, a autora fala sobre o lado oculto de continuar desenhando seus trabalhos, ainda hoje, de maneira completamente analógica.

Coleta de dados/textos: Oda Makoto.

 

“Só de ter papel branco e lápis, eu já me divertia” – De sua infância até sua estreia

 

– Parabéns pelos seus 40 anos como mangaká! Nesta entrevista, gostaria de explorar as suas origens. Que tipo de criança você foi?

 

Desde criança, eu gostava da atividade de desenhar no papel por si mesma. Só de ter um papel branco e um lápis, eu já me divertia desenhando.

 

Ilustração feita por Shimizu Reiko antes de sua estreia

– Que tipo de mangá você lia nessa época?

 

No tempo do ginasial, Fumizuki Kyōko e Hagio Moto foram minhas duas grandes influências. Porém, como uma amiga muito próxima era uma grande fã da Hagio, eu disse que a concederia a ela e ficaria com a Fumizuki (risos).

 

– Que duas escolhas mais luxuosas (risos)! Onde, precisamente, você acha que fica o charme das obras da Fumizuki?

 

Ela é uma excelente desenhista. Como ela desenhava a vegetação, as flores, a ambientação de maneira muito rica, eu ficava aguardando todos os meses com bastante expectativa para comprar as revistas em que suas obras eram publicadas. Eu também gostava muito de Ichijō Yukari e Ōya Chiki.

 

– Só mangakás que são excelentes desenhistas, né?

 

É verdade. Eu apreciava os enredos também, mas – se fosse para escolher – diria que era mais frequente que os desenhos me encantassem. Uma pessoa que não liga muito para desenhos satisfaz–se com apenas uma leitura geral. Ela não compraria o encadernado, né?

 

– Naquela época havia também muitas mangakás que estreavam enquanto ainda eram estudantes.

 

Naquele período havia uma imagem de que pessoas de talento como Narita Minako, Kuramochi Fusako etc estreavam todas enquanto ainda estavam no colegial. No passado, a Ichijō e a Satonaka Michiko também haviam estreado quando eram colegiais. Por isso, achava que seria ruim se eu também não estreasse com essa idade e até submeti minhas obras nos concursos, mas não consegui ganhar os prêmios de estreia.

 

– Como você passou seu tempo até que isso acontecesse?

 

Eu trabalhei no escritório de uma empresa que manufaturava roupas em Kyushu. Como a filial ficava a cinco minutos a pé da minha casa, pensei que seria bom. Quando o trabalho acabava, os outros iam juntos passear por aí, mas eu voltava direto para casa e ficava desenhando as obras para mandar para editoras. Por isso, eles ficavam curiosos sobre o que eu estaria fazendo.

 

– Foi precisamente aí, no meio do ano de 1982, que você recebeu o prêmio honorário da 9ª edição do concurso “Lala Manga High School” da Hakusensha por sua obra “Foxy Fox”, não é?

 

Eu entrei nesta empresa com 18 anos e parei com 20. Porque se você trabalhasse por um período de 2 anos, receberia uma indenização ao sair (risos). Depois disso, como ainda não estava decidido quando seria minha estreia, eu fiquei o tempo todo em casa desenhando. Num ritmo de um desenho por semana, no estilo de obra estética. Não tinha nenhuma intenção de publicar em algum lugar, mas era divertido fazê–los.

 

“Se você desenhar direito, as pessoas vão entender” – a obra “22XX” que se tornou seu ponto de virada.

 

– No ano seguinte, “Sansaro Story” foi publicado na revista Lala e você conquistou a tão desejada estreia.

 

Mas, naquela época, eu ainda não tinha certeza sobre o que queria desenhar. Como eu virei mangaká porque queria desenhar, era ruim em pensar em histórias. Ficava pensando se não seria melhor alguém fazer o roteiro para mim.

 

– Essa situação continuou até quando?

 

Até desenhar “22XX” em 1992. Até ali, a direção que eu queria seguir ainda estava meio vaga e tenho a sensação de que com ela consegui decidir um pouco meu estilo. Foi a primeira história sombria desenhada por mim.

 

– O tema dela é o canibalismo. Por mais que o nível de tolerância da Lala seja alto, publicar uma obra dessas deve ter sido uma aventura.

 

Meu editor era muito compreensivo e disse para publicarmos como eu havia desenhado. E então a reação das leitoras também foi muito boa. Essa obra fez–me perceber pela primeira vez que, se eu desenhasse direito, as pessoas entenderiam.

 

Imagem de "22XX"

– “22XX” é uma obra–prima não apenas do shoujo mangá, mas também da História da ficção científica japonesa. Ela aparece bastante como tópico nas redes sociais também.

 

Eu tenho uma ligação emocional com essa obra porque foi ela que se tornou meu ponto de virada. Às vezes, fazendo “egosearch”, ainda encontro pessoas que gostam dessa obra e isso me deixa feliz. Porém elas erram bastante o título (risos). Escrevem “2200” etc...

 

 O correto é “22XX (nii-nii-ekkussu-ekkussu)”! E então, seguindo a trilha deixada por “22XX”, há também “Kaguya-hime” e “Himitsu – TOP SECRET”.

 

Eu ficava me perguntando se não teria problema escrever obras em que aparecem tantos cadáveres dentro do gênero shoujo mangá. Estava constantemente com medo de que todos fossem rejeitá-las dizendo que eram macabras e assustadoras. No caso de “Himitsu – TOP SECRET”, até que a obra fosse anunciada eu gemia dormindo todas as noites. Ficava pensando dentro dos sonhos que não deveria fazer um mangá tão sério e macabro, e que era preciso desenhar personagens com maior probabilidade de se tornarem populares.

 

Ilustração colorida de "Himitsu  TOP SECRET"

 Mas, mesmo quando você desenha uma cena de assassinato, há nela uma enorme beleza, como se a elegância ali habitasse. Até “Kaguya-hime” os mangás eram publicados na edição de bolso em brochura da “Hana to Yume Comics”, mas, com o aumento do formato a partir de “Himitsu – TOP SECRET”, passou a ser possível apreciar melhor o charme dos seus desenhos e seus fãs devem ter ficado felizes.

 

O que eu lembro de “Himitsu – TOP SECRET” é que, quando estávamos preparando o encadernado do volume um, meu editor daquela época quis fazer uma edição de luxo ao estilo do “AKIRA” de Ōtomo Katsuhiro, mas ele tomou uma bronca de seu chefe (risos).

 

 A série spin-off de “Himitsu – TOP SECRET” chamada “Himitsu – season 0” finalmente terá sua serialização reiniciada na edição da Melody que estará à venda em 27 de outubro.

 

Sim, acho que depois de dois anos e meio.

 

 Nesse intervalo da serialização, houve tanto a pandemia de coronavírus quanto as guerras. Imagino que tenham passado diversas coisas por sua cabeça. Como foi?

 

Foi doloroso quando a Rússia invadiu a Ucrânia. Porque eu já tinha visitado Kiev para coletar dados para “Tsuki no Ko – MOON CHILD”.

 

 Foi justamente durante a serialização?

 

Creio ter sido bem no meio da serialização. Havia uma parte da história que eu achava que tinha de ir para Kiev para entender direito, então eles me permitiram ir.

 

 A existência de Chernobil representa uma chave importante para essa história sua. Você chegou a ir perto do lugar em que ocorreu o acidente nuclear?

 

Como eu estava acompanhada por alguém nos estágios iniciais de gravidez, nós não fomos por termos ficado um pouco receosas. Mas em Kiev e seus arredores eu ouvi histórias das pessoas locais e coletei dados sobre os grupos de balé de lá. Como quem me acompanhou tinha conexões com pessoas relacionadas ao isso, tenho boas memórias de visitar escolas e grupos de balé. Kiev é uma cidade muito bonita.

 

Imagem de "Tsuki no Ko  MOON CHILD"

 “Tsuki no Ko” (A Criança da Lua) é um exemplo perfeito do fato de que as crianças têm um papel importante nas suas obras. Em “Himitsu – season 0”, elas são uma chave essencial para a história, né? Você faz isso intencionalmente?

 

Como o impacto é maior quando uma criança é a agressora ou a vítima, creio que acabe recorrendo a esse recurso. Na história que escrevi na retomada da serialização, eu me baseei na genética do comportamento, então aparecerá uma criança também.

 

 O que seria a genética do comportamento?

 

Falando de forma que se entenda facilmente, pesquisa-se em que nível nossa personalidade, nossa inteligência e nosso comportamento são influenciados por nossos genes. Nos episódios que escrevi até o volume dez, talvez dê para se dizer também que escrevi variações de exemplos da genética do comportamento.

 

“O lado irretornável também é algo que dá sabor às coisas analógicas” – os melhores aspectos de sua primeira exposição

 

 Nós escutamos várias histórias suas e agora chegou a vez de finalmente ver de perto numerosos desenhos feitos por você ao longo de 40 anos nesta exposição de arte. A abertura do evento está finalmente próxima a nós, mas gostaria que nos contasse o que levou você a planejar fazer isto?

 

Eu já vinha desenhando “Himitsu – TOP SECRET” por um longo período de tempo e também tinha vários desenhos acumulados, então falei para meu editor que queria lançar um “artbook”. Ele concordou comigo e eu estava na expectativa quando ele me volta e diz que tinham decidido fazer uma exposição. Eu falei “Ei, a escala aumentou muito!” (Risos)

 

 É surpreendente que esta seja sua primeira exposição.

 

Alguns anos depois de minha estreia, o pessoal do meu fã clube alugou uma galeria e fez uma em escala pequena, mas esse evento grande, oficial, é a primeira vez.

 

 A seleção dos desenhos que serão exibidos foi feita por você mesma, não é?

 

Sim. Se tivesse seguido apenas o meu gosto pessoal, teriam sido escolhidas somente obras parecidas umas com as outras, então eu propositalmente selecionei de forma a ter variedade. Por exemplo, na época de “Kaguya-hime”, eu gostava de ornamentos brilhantes. Nesse período eu gostava de fazer desenhos excessivamente detalhados, então me dedicava ao máximo em desenhar roupas que pareciam trajes de realeza.

 

Ilustração colorida de "Kaguya-hime"

 Como um grande número de mangakás passou e fazer suas obras digitalmente, não há mais muitas coisas que possamos chamar literalmente de desenhos originais. Neste momento, o próprio fato de conseguirmos fazer uma exposição de originais é por si só valioso. Você continua, mesmo agora, trabalhando em modo totalmente analógico?

 

Sim. Há mais ou menos dez anos, recomendaram-me que ao menos colorisse as obras digitalmente, porque assim poderia corrigir caso errasse etc e eu cheguei a estudar. Porém, se eu olho a tela por uma hora inteira já começo a passar mal e não dá para continuar. Eu não consigo olhar sem cessar para uma tela que emite luz.

 

 Há alguma dificuldade decorrente do analógico?

 

Conforme a digitalização avança, a demanda por ferramentas analógicas vem diminuindo e está desaparecendo rapidamente. Eu usava as placas de desenho da marca Crescent usadas pela Narita Minako porque eles eram muito fáceis de desenhar e limpos, mas ficou difícil obtê-los tanto pela internet quanto por lojas de materiais artísticos. Agora eu uso as placas da marca Canson. Mas me incomoda um pouco as irregularidades que granulosamente surgem parecendo as aberturas de um tatame. Além disso, as retículas usadas em manuscritos monocromáticos serão descontinuadas rapidamente, então eu me preocupo. As tintas coloridas da LUMA também sumiram...

 

 Em meio a isso, o lado da técnica também sofreu alterações, não é?

 

Por exemplo, as linhas principais da capa do volume dez de “Himitsu – season 0” foram feitas a lápis. Desses comuns como o H e o HB. Como eles dão um efeito final claro e leve, ultimamente só tenho usado esses. Eu desenho levemente os traços principais com eles e finalizo com a tinta colorida. Na verdade, como na época de “Tsuki no Ko” eu também fazia as linhas centrais com lápis coloridos e depois colocava as cores, pode-se dizer também que retornei novamente a isso.

 

Ilustração colorida que se tornou a capa do volume 10 de "Himitsu  season 0"

 Dependendo do artista, há aqueles que mudam seu estilo conforme os anos passam, mas no seu caso, embora sua técnica tenha se alterado, seu traço tem se mantido consistente.

 

É verdade. Nestes quarenta anos, creio que ele não se alterou muito. Eu já não consigo desenhar de nenhuma outra forma.

 

 Você vai na exposição de outros mangakás, às vezes?

 

Esses tempos atrás fui na exposição de Matsunae Akemi. Eu uso a coloração de suas obras como referência porque elas são muito bonitas. Eu recortava as páginas da revista Bouquet (Shueisha) e as conservava em pastas. Além disso, claro, havia uma pessoa extraordinária como Uchida Yoshimi. Como eu posso dizer? Ela publicava coisas em que cada umas das páginas parecia uma obra de arte e, por isso, tendo pessoas como ela na minha frente, eu achava que ainda tinha um longo caminho a percorrer.

 

 Onde você acha que está a peculiaridade dos seus desenhos?

 

Huuum, talvez no fato de que eu desenhe muitas plantas. Eu gosto de plantas desde sempre. Se eu desenho esse tipo de coisa, sinto-me estável. E acho que mais do que flores, são as folhas que causam isso. Como os personagens principais de “Himitsu – TOP SECRET” são todos homens, as folhas se tornaram mais numerosas do que as flores. Eu gosto de pintores como Alfons Maria Mucha e Maxfield Parrish e aprecio a forma como eles desenham as plantas usando-as como ornamento. Talvez eu gaste mais tempo desenhando-as do que gasto fazendo seres humanos.

 

 Falando nisso, você também exibirá desenhos que fez antes de sua estreia, não é?

 

Sim. As coisas que desenhei no período entre o meu pedido de demissão da empresa e o meu debute como mangaká que falei lá no começo. Eu costumava deixá-las guardadas naqueles álbuns de fotografia antigos. Após minha estreia, quando parecia que não conseguiria fazer uma coloração dentro do prazo, eu já cheguei a reusar algumas dessas imagens (risos).

 

 Há algum outro material raro na sua exposição?

 

O baralho completo de tarô que eu fiz para a Lala.

 

Ilustração das cartas de tarô publicadas pela Lala entre março e abril de 1993

 Isso é incrível!

 

No começo eu só havia feito os arcanos maiores, mas depois desenhei o resto que faltava e comercializei. Acho que já se vão uns trinta anos disso.

 

 Por fim, você poderia nos apresentar quais são, na sua opinião, os pontos que mais valem a pena ser vistos desta exposição?

 

Eu mesma, antes de entregá-los ao meu editor, tirei cópias coloridas dos desenhos de que gosto e os guardei. Nós planejamos para que esses trabalhos sejam exibidos. Um dos que mais gosto particularmente é, por exemplo, o desenho com os galhos que virou a capa do volume dez de “Himitsu – TOP SECRET”.

 

 O desenho com as linhas principais feitas a lápis mencionado por você agora há pouco, né?

 

Isso. A sombra das folhas aparece na camisa, então eu precisava desenhar, da mesma forma, uma quantidade suficiente no rosto, porém, se fizesse muito e falhasse, acabaria entrando num ponto de não-retorno. Por isso lembro de ter colocado essa sombra com medo. Se você coloca cores muito fortes no rosto, já não dá para voltar atrás. Eu coloquei as sombras no pescoço num ímpeto só, mas no rosto tive dificuldade.

 

 Essa intuição é algo que decorre também do analógico.

 

É verdade. Nesta situação, se fosse digital, eu tentaria desenhar primeiro e, mesmo que falhasse, conseguiria retornar ao ponto anterior, mas no analógico não consigo fazer isso. Porém, é esse sentimento de irretornabilidade, é nesse aspecto de tudo-ou-nada, que está o lado bom do analógico.

 

 Espero que muitas pessoas consigam apreciar ao máximo o charme dos seus desenhos que existem como coisas e não como dados. Parece que, como presente para os visitantes, haverá uma mensagem especial dela, então fiquem na expectativa.

 

Eu estou com um pouco de vergonha... (Risos) Mas aguardarei ansiosamente também a abertura da exposição.

 

Perfil

Shimizu Reiko

 

Nascida em Tóquio a 26 de março, criada em Kumamoto. Estreou em 1983 com a obra “Sansaro Story”. Com seu traço elegante e suas histórias de ficção científica em grande escala que usaram como tema fábulas e lendas, atraiu muitas leitoras e, em 2002, ganhou o 47º Shogakukan Manga Award na categoria shoujo por “Kaguyahime”. Seus outros trabalhos de destaque incluem “Tsuki no Ko – MOON CHILD”, no qual retrata a lenda da Pequena Sereia e seu medo de se tornar uma mulher adulta; “Himitsu – TOP SECRET”, suspense que se passa em um futuro próximo transformado em anime em 2008 e filme live action em 2016; e a série Jack e Elena, a qual tem por protagonistas esses personagens humanoides em obras de ficção científica como “Ryū no Nemuru Hoshi” e “22XX”, dentre outras. Desde 2015, está publicando o spin-off de “Himitsu – TOP SECRET” chamado “Himitsu – season 0” na revista Melody (Hakusensha).

ENTREVISTA: TAMURA YUMI FALA SOBRE O DORAMA DE "NÃO CHAME DE MISTÉRIO" E AS IDEIAS QUE PERMEIAM SUA OBRA (PARTE 1)

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